quarta-feira, 23 de abril de 2014

Zuzu

É de Chico Buarque (e como não seria?) a melhor definição para Zuzu Angel. Foi uma solitária mãe da Praça de Maio, em pleno Brasil.

A história de Zuzu é comovente e extraordinária. Pioneira na criação de uma moda genuinamente brasileira, ela mudou o rumo de sua vida ao não aceitar a morte do filho, Stuart, torturado com requintes de crueldade pela ditadura militar. Zuzu recorreu a autoridades e artistas do Brasil e do mundo para encontrar o filho. Ou os restos mortais dele, até hoje não localizados.

A mineira de Curvelo começou a carreira criando saias em casa e, com seu talento, levou a moda brasileira para fora. Conquistou clientes famosas, como Joan Crawford e Liza Mineli. Zuzu não teve medo do cenário adverso da época. Eram raras as mulheres estilistas, mas isso não a intimidou. Pelo contrário. "Eu sou a moda brasileira", dizia. Além disso, ousou ao utilizar elementos típicos do país, como a renda e estampas de pássaros. Separada do marido norte-americano, criou os três filhos ao mesmo tempo em que conquistava o reconhecimento profissional.

Na Ocupação Zuzu, exposição em cartaz no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149, de graça) até o dia 11 de maio, o primeiro impacto é causado pelo som dos sinos, logo na entrada. Deve ser uma referência à origem mineira. E lembra um ritual fúnebre de antigamente. Para quem conhece a trajetória de Zuzu apenas a partir da morte do filho, essa primeira parte da ocupação é surpreendente. Mostra bem a importância da estilista para a moda brasileira. Talvez ninguém tenha chegado a esse patamar desde então.

Zuzu criou estampas e um tecido desenvolvido especialmente para dar leveza a suas peças. Usava chitas e fitas quando isso ainda era considerado cafona. Não tinha receio de aproveitar as riquezas regionais do país para embelezar saias, calças e vestidos. Era chique e, em sua última entrevista, resumiu seu grande sucesso dizendo que as mulheres poderosas também gostavam de pagar o justo por suas roupas.

Não por acaso, imagino, a segunda parte da Ocupação Zuzu acontece no andar debaixo do Itaú Cultural. Não tem como descer a escadaria sem pensar nos porões da ditadura. E é uma segunda parte de luto, como os vestidos pretos usados pela estilista quando descobriu a morte do filho, em 1971, logo após ser preso por agentes da Aeronáutica.

Stuart Angel era dirigente do MR-8, uma das organizações clandestinas de combate à ditadura. A cena de morte descrita por outro preso político, Alex Polari, é das mais aterrorizantes dos anos de chumbo: Stuart teria sido arrastado por um jipe, com o corpo todo machucado e a boca no cano de descarga.      

Mais uma vez, Zuzu precisou de muita coragem para conhecer os detalhes da morte e começar sua luta, sempre de luto. Montou um dossiê que entregou para diversas autoridades, inclusive Henry Kissinger, durante visita do então secretário de estado norte-americano ao Brasil. Criou um cinto com crucifixos pendurados - é uma das peças mais bonitas e emocionantes da exposição. Associou à sua marca o desenho de um anjo de olhos espantados. Era seu filho - e tantos outros torturados. Mandou imprimir a foto de Stuart em santinhos que distribuía para políticos, artistas, jornalistas e militares.  

Também não é à toa que um imenso telão reproduzindo o mar foi instalado nessa segunda parte da ocupação. O fundo do mar é o provável destino dos restos mortais de Stuart. Outros sons impressionam: a reprodução da leitura do AI-5 é seguida de uma entrevista em que Zuzu fala, emocionada, sobre a tortura que levou o filho à morte.

No meu caso, outro som acompanhou todo o percurso da ocupação. Um som interno, porque não ouvi a música tocando ali, mas ela não saiu da minha cabeça: "Angélica", a composição em que Chico faz sua homenagem a Zuzu. Foi para o cantor e compositor que a estilista entregou uma carta com um alerta: assim como o filho, ela corria o risco de ser morta por denunciar as atrocidades da ditadura. E foi, num acidente de carro anos depois reconhecido como armadilha.

Entre os documentos expostos, estão cartas que a filha mais nova de Zuzu, Hildegard, recebeu ao reconstituir a saga da mãe. São documentos em que testemunhas dos últimos momentos da estilista se oferecem para ajudar. Uma delas conta que foi procurada por Zuzu dois dias antes do acidente de carro, em 1976. Ela estava muito atormentada com as perseguições sofridas. Outra testemunha ouviu o acidente, chegou minutos depois ao local e encontrou vários carros oficiais cercando o local.

E tem uma foto. E que foto. Mostra um detalhe do carro amassado e a placa caída ao lado de um sapato de salto. O fim de Zuzu.  

"Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho

Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar"

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sampa

O baiano Caetano Veloso, com “Sampa”, revela a cidade feia e bonita ao mesmo tempo. O susto de quem chega. A deselegância. O privilégio de ser o lugar de Rita Lee. A poesia concreta. E a gente diversa. Os novos baianos, africanos, italianos, cearenses, cariocas, interioranos... Caetano morou num edifício na rua São Luís, perto da Praça da República e da esquina que virou mito por causa de sua canção: a que une as ruas Ipiranga e São João. “Sampa” fala sobre esse período em que o Centro de São Paulo foi tropicalista. O baiano se inspirou na cidade e vice-versa. Fez também uma homenagem a Paulo Vanzolini ao usar uma frase melódica de “Ronda” no último trecho de sua “Sampa”. O compositor e zoólogo foi outro grande tradutor de São Paulo e sua boêmia. Uma das mais recentes caminhadas noturnas promovida pelo grupo que não desiste de revitalizar o centrão de São Paulo teve como tema esses encontros: a Ipiranga com a São João, Caetano e Vanzolini, a gente de toda parte com a São Paulo dura, nua, crua e muito bela. É só olhar e se entregar. Essa cidade é sedutora. O projeto Caminhada Noturna foi idealizado por Carlos Beutel, dono de restaurante vegetariano e militante pela recuperação do Centro. Os passeios são realizados nas quintas-feiras, a partir das 20h. O encontro é sempre na frente do Teatro Municipal, cenário que por si só é uma grande atração. A pé, grupos de 50 a 100 pessoas percorrem trajetos no Centro e recebem informações históricas e arquitetônicas. As noites sempre terminam em pizza, em outro lugar que é a cara de São Paulo: um dos vários restaurantes localizados no térreo do Edifício Copan. Logo de cara, Beutel e seus parceiros dão o recado: não é tão perigoso assim caminhar pelas ruas. Ninguém precisa passar a vida circulando apenas em shoppings. Ninguém merece. A violência existe, é óbvio. Mas não é catastrófica como querem nos fazer acreditar. Dá para caminhar em grupo pelo centrão de São Paulo sem medo de ser feliz. A caminhada sempre tem especialistas convidados para falar o que sabem sobre os pontos visitados. Uma das informações: a Ipiranga com a São João é alvo de um processo de tombamento como patrimônio imaterial de São Paulo. A música de Caetano fez o local virar um símbolo eterno. Beutel e outros defensores da preservação do Centro acham que falta algo a mais ali. Uma estátua de Caetano, quem sabe? Como faz o Rio com seus personagens marcantes. Acho que não falta é nada. A arquitetura da região central, a história da urbanização da região, a música e o Bar Brahma, localizado na famosa esquina, já bastam para atrair moradores e turistas interessados em conhecer melhor a cidade. Com shows de nomes como Cauby Peixoto e Ângela Maria, o Bar Brahma faz sua parte para manter o Centro vivo. O grupo da caminhada noturna também. Dezenas de sem-teto dormindo nas ruas e sujeira espalhada por todos cantos nos lembram o tempo todo que ainda falta muito. O que não dá é para desistir no meio do trajeto. As belas fotos são de Su Stathopoulos