sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Do tango ao bolero

Bacanices da tecnologia.

Reler a biografia de Elis Regina e ouvir, pouco a pouco, todo o repertório que fez parte da vida da diva.

Do dramático tango Adiós, pampa mio, lançado na década de 40 e a primeira música que ela aprendeu a cantar, até o sensual bolero Me Deixas Louca, uma de suas últimas gravações.  

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Canto das Mulheres do Asfalto

O risco de escolher o Largo do Arouche para a encenação de uma peça de teatro ao ar livre é a concorrência. O público tem muito o que olhar, além dos atores em cima das árvores e atuando na rua, com o sinal aberto. Os galhos góticos das árvores tradicionais. O moço de cabelo azul. O jovem drogado, sorriso aberto diante da novidade na praça de sempre. A arquitetura eclética dos prédios. O gato que ri. As travestis. O restaurante francês. A floricultura. As esculturas. A miséria escancarada. As ousadias de que só São Paulo é capaz. A peça é O Canto das Mulheres do Asfalto. E, sim, olhar e ouvir o Arouche faz parte do espetáculo, em cartaz até o final de agosto.

domingo, 19 de julho de 2015

O homem velho

O tempo passou para ele. O homem está gasto. Na blusa de frio, cheia de pequenos rasgos - gola, ombro e cotovelo. Na botina cano curto, sola carcomida, um lado menor que o outro. Nas mãos, levemente trêmulas. Na pele, enrugada. Na calça, velha. Nos cabelos, brancos e ralos. No repertório, antigo e resistente. Ele grita "isso é Brasil" ao ouvir Ernesto Nazareth. Nas emoções - chora junto com o músico diante da valsa. Menos os olhos. Estes, seguem. Cobiçosos. Menos a música. Ele carrega o cavaquinho para tocar aqui, ali.

(Inspirado em personagem real que frequenta as rodas de choro da Biblioteca Mário de Andrade)   

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Artigas, o gênio perseguido

Um dos grandes nomes da arquitetura moderna brasileira, Vilanova Artigas participou da criação da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e formou toda uma linhagem de profissionais espalhados pelo Brasil.

Em suas aulas, defendia com vigor a importância social da arquitetura. Queria que suas obras fossem compreendidas por todos, independente do repertório. Ao falar sobre o prédio da FAU-USP, divertia-se com a própria ousadia, mencionava a ausência de portas e o fato do prédio ser um lugar onde não faz frio ou calor.

Há Artigas em obras assinadas por vários outros arquitetos.

Revolucionário, corajoso, formador, referência, humanista.

Mesmo com tudo isso, foi aposentado compulsoriamente pela USP em 1969, por causa do AI-5, o ato institucional que endureceu ainda mais a ditadura militar. O motivo é o mesmo que justificou outras perseguições, torturas, mortes e exílios: era comunista.

Esse episódio é lembrado agora, em 2015, ano em que o arquiteto genial completaria 100 anos. O centenário é marcado por exposições, documentário, livro, visitas a obras, debates e bate papos.

Então, ressurge esse episódio inacreditável da história brasileira.

Em 1980, com a anistia, Artigas voltou à USP. A universidade, com toda a sua crueldade burocrática, permitiu que ocupasse apenas a cadeira de professor assistente. Logo ele, um dos pais da arquitetura moderna, o homem que usou toda a sua capacidade crítica e o humanismo para receber as influências externas, transformá-las e criar o novo, o ousado, o marcante.

Em um dos depoimentos colhidos para a homenagem ao centenário, um ex-aluno, José Armênio de Brito Cruz, conta que Artigas às vezes mostrava o seu holerite. O criador de obras emblemáticas em São Paulo e outras cidades ganhava o equivalente a R$ 500.

Outro aluno, Rui Ohtake, conta que o mestre terminava a aula e não ia embora. Gostava de conversar com os estudantes e esquecia os compromissos do escritório.

Quatro anos depois da anistia, para voltar a ser professor titular, Artigas foi obrigado pela USP a se submeter a um concurso público...

Conta Reginaldo Forti, genro do arquiteto, que ele levou a sério. Trancava-se em seu escritório para estudar, se preparar para as provas escrita e oral, enfim, para a banca examinadora.

Passou no concurso com nota 10, é óbvio, e foi reintegrado à universidade que ajudou criar. A prova na banca examinadora virou um ato político com a presença de muitos estudantes e jornalistas. Em entrevista, após a prova, Artigas deixou seu protesto. Disse que a grande universidade fez com ele uma molecagem medieval.

Sete meses depois, ele morreu.

Paulo Markun, amigo da família, considera importante lembrar nos dias atuais que a principal universidade brasileira, o centro de pensadores, foi capaz de se submeter à imbecilidade dos ditadores brasileiros. A palavra imbecilidade é por minha conta.

Não foi só isso. Antes, Artigas precisou passar um período de exílio no Uruguai. Foi encontrado por amigos na miséria, em um cortiço, Também arquiteto modernista, também perseguido, Paulo Mendes da Rocha participava nessa época de um esquema de "guerrilha" que permitia a Artigas encontrar a mulher e os filhos em um "aparelho" da resistência nos anos de chumbo.

Entre os principais projetos de Artigas em São Paulo estão o estádio do Morumbi (1953), o edifício Louveira (1946), no Higienópolis, e o prédio da FAU-USP (1961), este considerado sua obra magna.

“A FAU é um espaço fluido, integrado, somático. A pessoa não sabe se está no primeiro andar, no segundo ou no terceiro”, dizia sobre o projeto para a USP.

O Louveira, com os dois blocos "soltos" do chão intercalados por um jardim integrado à praça Vila Boim, virou arte urbana e histórica. É programa cultural passar em suas calçadas, olhar para as janelas do tipo guilhotina, subir as rampas, caminhar pelo jardim, apreciar o vanguardismo, a ousadia.

Muito do arquiteto está na Ocupação Artigas, no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149). As ocupações desse que é um dos melhores centros culturais da cidade incluem debates e visitas temáticas. No caso de Artigas, há visitas programadas a várias de suas obras, sempre aos sábados, de manhã. Uma oportunidade incrível.

O documentário "Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz" está em cartaz no Espaço Itaú.

As obras estão todas por aí.





As fotos do Louveira, encontradas na internet, são de Cristiano Mascaro (preto e branco) e da revista Casa Vogue (colorida).

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Um abraçaço

A caminho do trabalho, no Centro de São Paulo, observo um velho japonês, de óculos modernos. Ele caminha com dificuldade. Os passos são curtos, meio arrastados, de soquinho. Eu pensava nas contas a pagar. Olhei rapidamente. Também rapidamente, pensei no passado daquele senhor, agora caminhando sozinho. Sempre penso no passado dos velhos e velhas que agora caminham sozinhos.
Então ele me abordou.
- Onde vai assim?
Assim como?
De xale verde, cabelos molhados do banho, calça jeans um pouco justa, sapatilha preta, batom rosinha, preocupada com o mês que não fecha.
- Vou trabalhar.
- Onde?
- Logo ali em frente.
- Ah, bom trabalho. E me dá um abraço.
Eu dei.
E ele continuou seu caminho, sorridente.
Eu também.  

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Coração a batucar

E essa guitarra sensacional do Davi Moraes? E o som dos músicos todos, que coisa linda!! E a cantora divando no palco? É muito talento envolvido na causa.

Ouça com seus próprios ouvidos, veja com seus próprios olhos: Coração a batucar

terça-feira, 28 de abril de 2015

O dia em que Fernandona aplaudiu Abu

Há dois, três anos, assisti Fernanda Montenegro na peça "Viver sem tempos mortos", obra inspirada na correspondência de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Todos, no teatro, estavam ávidos pelo talento impressionante da atriz. Importava pouco o texto denso dos existencialistas. E Fernandona, no final, contou que sempre representa para um coletivo. Usa toda a sua energia e respeito para conquistar o público. Naquele dia, no entanto, foi diferente. Ela atuou para uma só pessoa da plateia: Antônio Abujamra, o Abu, homem dos palcos que inspirou a grande dama. Fernanda, elegante e emocionada, abriu mão dos "bravos" tão constantes em sua carreira e, naquela noite, aplaudiu Abu.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

É feio. E é bonito

Cruzo diariamente algumas das ruas sob o Elevado Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, na região central de São Paulo. Sempre penso: como deixaram o Maluf fazer isso? Por que as pessoas não foram para a rua protestar, não deitaram no asfalto, não impediram o trânsito, não mandaram ele construir o monstrengo na porta da casa dele?

Dia desses, um amigo respondeu o que eu já sabia.

O Minhocão foi construído na década de 1970, em plena ditadura militar. Maluf, prefeito nomeado pelos militares, fazia o que bem entendesse em São Paulo. E entendeu que aquele monte de concreto sinuoso era o melhor para agilizar o trânsito na região e, claro, para alavancar a carreira política dele.

Os moradores dos bairros afetados não foram consultados, isso talvez nem existisse na época. Para dar um toque a mais no absurdo, o prefeito biônico deu o nome de um ditador dos "anos de chumbo" para a obra sem poesia. Costa e Silva, eis o nome da "cicatriz" urbana.

Imagino o que os moradores dos diversos edifícios localizados rentes ao pontilhão sentiram ao abrir a janela e ver a paisagem drasticamente transformada. Segundo os ativistas do movimento Parque Minhocão, os veículos chegam a passar a apenas cinco metros de alguns dos apartamentos localizados ao longo do percurso.

Numa caminhada pelo elevado, que atualmente fica fechado para o tráfego de veículos durante todo o dia nos domingos e feriados e também durante a noite, vi uma cena inacreditável. O Minhocão praticamente encosta numa das sacadas. Isso significa que, além do barulho e da poluição no dia a dia, basta um pulo para qualquer pessoa entrar no apartamento, nos dias em que o elevado está aberto aos pedestres.

Os tempos são outros e hoje em dia o destino do Minhocão é alvo de discussões, debates, projetos e ideias que circulam sem restrições. O mais recente Plano Diretor da cidade prevê que seja desativado progressivamente até ser demolido ou transformado em parque.  

Fracasso urbanístico, obra polêmica, desastre, culpado pela degradação dos bairros no entorno, símbolo da falta de planejamento, aberração... O fato é que o elevado com nome de ditador foi incorporado à paisagem urbana, virou cenário para filmes, novelas e fotos. É sim a cara de São Paulo.Uma das caras. Mais recentemente, por causa dos horários em que fecha para o trânsito, foi assumido por milhares de moradores como espaço de lazer.

Num domingo à tarde qualquer, vira quadra de futebol, pista de corrida e caminhada, ciclovia, terraço para churrasco e piquenique, palco de teatro, encontro de amigos fãs da maconha, entre outras utilidades. É bonito ver tudo isso.  

Ali acontece, de forma espontânea, o sonho dos movimentos que defendem a ocupação das ruas como atitude para exercer o direito à cidade: a população se apropriou do espaço destinado originalmente apenas aos veículos.

E, bem... Do alto,




o Minhocão é bonito, inclusive no que diz respeito à decadência dos prédios no seu entorno. A feiura tem sua belezura, inspirou-se outro amigo. Vários símbolos de São Paulo são avistados numa caminhada pelo elevado: o Copan, a igreja de Santa Cecília, o Castelinho da rua Apa, a praça Roosevelt, os inferninhos, grupos de teatro que transformam as janelas em pequenos palcos, enfim, a vida que segue ali, bem perto dos nossos olhos.

Para saber mais sobre o movimento que defende o Parque Minhocão, veja aqui.

 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Foi um rio...

Tenho muita inveja de quem canta sambas antigos de cor. A letra toda, sem errar, com ritmo, nas rodas e nos espetáculos. Aconteceu ontem, no show do Paulinho da Viola, no Sesc Pinheiros. Um casal maduro saboreou a apresentação com o gosto especial de conhecer todas as canções, sem pular nenhuma. Sentada uma cadeira à frente, ouvi tudo. Eles cantaram suave, como Paulinho merece. Então, o sambista contou a história de seu maior clássico, "Foi um rio que passou em minha vida". Ao ser lançada em São Paulo, a homenagem à Portela foi vaiada. O casal não se conformou:
- Mas como uma música dessas foi vaiada?, questionou o homem.
- É São Paulo. Nós somos assim, respondeu, conformada, a mulher.
Pode ser. São Paulo é enfezadinha mesmo. Mas ontem aplaudiu de pé a canção do príncipe carioca.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Caixa Cubo - a música brasileira resiste

“Arrasta essa gente aí, Pimentinha”, pediu Vinicius de Moraes. O bilhete, claro, era para Elis Regina, que entraria no palco do I Festival Nacional da Música Popular Brasileira para defender “Arrastão”, um clássico dos festivais, da música brasileira e da parceria entre Vinicius (letra) e Edu Lobo (música).

“Arrastão” venceu o festival realizado em 1965 e consagrou Elis. Foi um marco. A cantora, ainda com o visual anos 50 de Porto Alegre, ignorou as regras do canto minimalista da bossa nova e soltou o vozeirão. Soltou também os braços no estilo hélice giratória.  Inesquecível.

“Olha o arrastão entrando no mar sem fim
He, meu irmão, me traz Iemanjá pra mim”

No show “Redescobrir”, Maria Rita fez as pazes definitivamente com a memória da mãe ao girar os braços delicadamente na segunda parte da canção, uma das interpretadas na homenagem a Elis.

Na plateia dos espetáculos da turnê, fãs antecipavam o gesto que simbolicamente liga as duas grandes cantoras, mãe e filha que pouco se conheceram.

Reencontrei “Arrastão” na segunda-feira pós-Páscoa. Depois do feriadão, o dia tinha tudo para ser tedioso do início ao fim. Não foi, pelo menos em sua parte final.

A música de Edu Lobo, em um arranjo jazzístico, foi uma das tocadas no show de lançamento de “Misturada”, álbum do grupo Caixa Cubo Trio, formado pelos músicos Henrique Gomide (piano), João Fideles (bateria) e Noa Stroeter (baixo).

Os três viveram os últimos anos entre o Brasil e a Holanda, onde cursaram mestrado no Real Conservatório de Haia. Intercalaram estudos, ensaios, gravações e apresentações na Europa. Têm cara e jeito de meninos, mas já estão escolados.

O projeto Caixa Cubo é múltiplo e permite várias formações e propostas estéticas. Do samba ao jazz, passando pelo baião. Ou vice-versa.

Preciso dizer: fiquei chocada, no bom sentido, com a combinação juventude-dos-músicos mais grande-talento-dos-mesmos. Como pode, com aquelas caras de garotos, já terem chegado ao alto nível que quem estava no Sesc Consolação viu, ouviu e aplaudiu?

De acordo com o crítico Carlos Calado, o trio é a prova de que a falta de interesse da juventude pela música instrumental não passa de uma falácia.

Eles chegaram ao Sesc Consolação após participar de festivais de jazz na Europa e se apresentaram para uma plateia que reunia vários músicos experientes.

Não sou capaz de ler pensamentos, mas aposto em algo pairando por todas as mentes presentes: a genial música brasileira sobrevive.

“Misturada” resume bem o que os músicos do trio Caixa Cubo gostam de fazer: experimentar formas diferentes de tocar, não ficar presos a estilos, ir da música clássica à eletrônica, propor parcerias, renovar e, ao mesmo tempo, ter orgulho das influências do passado, citadas o tempo todo.

O álbum foi produzido por Rodolfo Stroeter, instrumentista do grupo Pau Brasil, entre outras dezenas de atribuições musicais. Ele é pai de Noa e, ao ouvir os garotos tocarem um repertório pronto nos ensaios e estudos, começou a bem sucedida produção.  

Assim como a apresentação do trio Caixa Cubo, os espetáculos instrumentais de toda segunda-feira à noite são de graça no Sesc Consolação (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque).

No final do show de lançamento de “Misturada”, os músicos responderam algumas perguntas do público e ouviram uma solicitação direcionada aos produtores do Sesc: “Levem esses músicos para todas as unidades”.

Sim, levem. Todo mundo merece ouvi-los.

A foto é do site do trio.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Tomie

O sol brasileiro que seduziu Tomie Ohtake refletiu cedinho no prédio moderno construído pelos filhos arquitetos da grande artista nipo-brasileira. Eu não sei se gosto daquele espelhado cor-de-rosa. Mas hoje gostei. Porque a luz, batendo no prédio, deixou a calçada rosada. Quase pink. Lá dentro, Tomie, de preto, óculos grossos, discreta também na despedida. Do lado de fora, o moço das coroas de flores não aderiu à comoção elegante.
- Vai, Corinthians.
Gritou, para um conhecido, entre uma entrega e outra.
Velho de guerra, um jornalista frilando falou sobre os velórios memoráveis de sua trajetória: Tancredo e Senna. O tom ácido, tão frequente nas redações, não escondeu de todo o orgulho. Ele fez parte da história.
Um dos filhos entrou numa obra de arte interativa para falar às tvs. Um jovem mostrou as tatuagens. Ergueu a barra da calça para mostrar. José Possi Neto seguiu a fila dos pêsames. Uma jovem oriental saiu apressada. Olhos vermelhos.
Li numa homenagem em rede social uma ótima definição para a artista: era a síntese de São Paulo.
Era sim, era muito isso.
E vai continuar.
Ontem à noite, a tradicional Caminhada Noturna das quintas-feiras foi mais sensacional do que as outras todas. Os caminhantes marcaram encontro com a banda do Sindicato dos Músicos, que abre o Carnaval na cidade.
Velhos músicos tocaram marchinhas também  antigas e todo mundo cantou e dançou no centrão belo, desesperado, sujo e fascinante. Bem na nossa frente, um painel colorido da artista, na Ladeira da Memória.
Ela gostaria da cena, acho eu.
E do rosa na calçada. Também do dia quente. 
Hoje o sol esquentou São Paulo. Sol de Tomie. 






sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Ron Mueck - a solidão encontra a multidão

A criação solitária está entre as curiosidades a respeito do artista australiano Ron Mueck, autor das esculturas hiper-realistas expostas na Pinacoteca de São Paulo. Ele gosta de criar sozinho, sem a necessidade de interagir com outras pessoas, pelo menos até o momento em que precisa de auxiliares. Prefere as fotos aos modelos vivos. Gosta do som ambiente e de ouvir rádio – nada de conversas.  

Não por acaso, suas esculturas humanas chamam a atenção por causa das expressões (e outros detalhes) que consegue reproduzir. E as expressões mostram solidão e tensão.
Como acontece onde as obras passam, em São Paulo a exposição atrai milhares de pessoas desde o início, em novembro. A fila vira o quarteirão – mas anda rapidamente, o que a torna fácil de enfrentar.

Eu e minha filha não chegamos a ficar entusiasmadas com as esculturas. Parecem grandes bonecos produzidos por um artista perfeccionista, capaz de transformar diversos materiais em pele, músculos, pelos, cabelos. O que mais impressiona são mesmo as expressões humanas.

Uma amiga alertou para o fato de que talvez seja interessante apreciar o talento de Mueck num ambiente mais tranquilo do que o das salas lotadas da Pinacoteca.

É verdade: no meio de uma multidão produzindo selfies sem parar, é difícil olhar com calma para as esculturas e perceber as nuances todas, a complexidade da arte.   

O australiano vem de uma família fabricante de brinquedos. O pai trabalhava com madeira. A mãe produzia bonecas de pano. Ele, de certa forma, continua no ramo. Transformou os grandes e pequenos brinquedos em arte.

É irônico que um artista criador de figuras aparentemente solitárias atraia multidões para apreciar seu trabalho. É irônico e é bom. O contraponto é pra lá de interessante.

Com os olhos e os ouvidos abertos e dispostos, a enorme fila em torno da Pinacoteca pode ser encarada como a primeira etapa da concorrida exposição. Ali, vivos e lutando para sobreviver, estão personagens que Mueck transformaria em esculturas de gestos tensos e olhares perdidos nos momentos de introspecção.

Eu escolheria a mulher de meia idade, culta, vestida de forma simples, explicando para a filha adolescente a origem da arquitetura do prédio.

- Os gregos usavam mármore no prédio todo. Os romanos só do lado de fora. Por dentro eram tijolos parecidos com os da Pinacoteca.

O museu de arte mais antigo de São Paulo está instalado no antigo edifício do Liceu de Artes e Ofícios, projetado pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo. Tem acervo com cerca de cem mil obras e espaços para restauração, catalogação e educação.

Grandes painéis instalados no subsolo contam toda a trajetória do museu. Um charmoso café tem como principal atração a vista para o Jardim da Luz, onde esculturas estão misturadas à vegetação e velhas prostitutas ganham a vida.

É um passeio imperdível na cidade, com ou sem Ron Mueck.

Também escolheria os irmãos vendedores de sorvete. Aliás, sorvete não. Paletas mexicanas. Fabricadas em casa, pela mãe dos garotos. Eles esgotaram o estoque e mostraram que, mesmo no improviso, são profissionais. Estavam uniformizados e prontos a orientar os consumidores sobre a melhor forma de degustar uma paleta mexicana caseira.

Os humanos são atração dentro e fora da Pinacoteca.

Ron Mueck
De terça a domingo, das 10h às 20h
Quinta, das 10h às 22h
Praça da Luz – acesso fácil pelo metrô da Luz
  


sábado, 3 de janeiro de 2015

'Tim Maia', no teatro, foi o melhor musical

Sou praticamente uma fanática por Elis Regina. Considero a voz da cantora gaúcha uma das melhores de todos os tempos, no mundo inteiro. Junto a isso, ela era capaz de interpretações inacreditáveis. Tinha talento também para o teatro, dizem alguns especialistas. Acho que sim. Mas não só. Era uma artista que sentia de fato as letras. Então chorava, era irônica, debochada, gargalhava, tudo isso sem perder a qualidade. Além de tudo, teve enorme capacidade de escolher bem os compositores que interpretaria. E sorte por ter nascido na era musical em que nasceu.

Mesmo assim, "Elis, a musical" está apenas no terceiro lugar entre os musicais que assisti nos últimos tempos. Para o segundo lugar, escolhi "Cazuza - pro dia nascer feliz". E em primeiro, "Tim Maia - Vale Tudo". Por que? Questionei, sozinha, o meu próprio ranking. Cheguei a algumas conclusões:

1 - Os musicais sobre as vidas de Tim e Cazuza não escondem nada. As drogas e os efeitos delas são retratadas com fidelidade. A dificuldade de lidar com as personalidades complexas e difíceis também. Os rompantes, a irresponsabilidade, as fases decadentes, idem. São musicais mais completos, mais emocionantes. Em "Elis", nem tudo é retratado. A morte, do jeito que foi, por exemplo. E Elis, o mito, tem muito a ver com a morte do jeito que foi. Aos 36 anos, numa overdose acidental, no auge da carreira, com filhos pequenos e começando uma nova fase profissional e pessoal. Eu ainda não tinha idade ou inteligência suficiente para gostar de Elis quando ela partiu. Mas não esqueço a comoção geral daquele dia. Pular isso, portanto, é optar por deixar a história capenga.

2 - O talento fora do comum da cantora deixou um legado único. Ninguém se iguala a Elis. As duas intérpretes (Laila Garin e Lilian Menezes se revezam no musical) são brilhantes, mas cantar como Elis... É impossível. Por mais consciência que os fãs tenham disso, fica um gostinho de frustração. Não é muito bacana admitir. Mas fica sim.

3 -  Cazuza é um artista da minha adolescência. Eu amava Cazuza. Queria ter visto as baixarias dele no Baixo Leblon. Ainda não aceitei a morte precoce. Com o tempo, percebi que o cantor e compositor deixou uma obra pequena e algumas canções datadas. Em compensação, outras são eternas. Como "Codinome Beija-Flor", uma das minhas preferidas. Ver tudo de novo, numa produção teatral impecável, foi demais para o meu pobre coração.

4 - Não assisti o Tim Maia feito pelo neto de Silvio Santos. Quando fui ver o musical, o intérprete da vez era Danilo de Moura. Sensacional. Pensei: será mesmo que Tiago Abravanel supera esse outro ator tão talentoso? Como não vi os dois em cena, fica a dúvida. E uma constatação: na aparência, na musicalidade e até no vozeirão, temos vários Tins. Os dois do filme, os dois do teatro, uns que fazem shows e ganham a vida sendo Tim Maia. Claro, o compositor, o ritmista, o louco, foi apenas um.

5 - "Tim Maia-Vale Tudo" era quase um show. A plateia terminava dançando e cantando. Danilo Moura achou aquilo um tesão. E quem não acharia?

6 - Assisti o musical sobre Tim ao lado de um tijucano. Ele vibrava. "Falaram sobre a minha rua". "Conheço esse lugar". "Estudei nessa escola". Um bairro em que viveram Tim, Roberto e Erasmo, entre outros, só pode ser o máximo. Desde então - e também por outras razões - sou louca pela Tijuca que ainda não conheço.