terça-feira, 16 de setembro de 2014

Guerra (e samba) no centro de São Paulo

Mãe de três filhos, Iara (o nome é falso, a pedido da entrevistada) morava há seis meses no prédio invadido na avenida São João, quase na esquina com a Ipiranga, no centro de São Paulo. Sabia que nesta terça-feira (16) de manhã os policiais chegariam com uma ordem de reintegração de posse, mas achou que daria para negociar e continuar morando ali.
"Eles entraram jogando bombas de gás e atirando com balas de borracha. Tive que sair pela janela com meus filhos e pular para o outro prédio', contou, chorando. Os filhos, de 16, 13 e 10 anos, escaparam sem ferimentos. Ela ajudou a retirar outras crianças do local e, sentada na calçada, contou que agora vai morar na rua.
Enquanto os moradores saíam ou eram retirados pela polícia após a resistência inicial, grupos de jovens usando a tática black bloc apareceram e começaram um conflito que se espalhou pelo centro de São Paulo.
"A nossa intenção não era guerrear e sim ficar no prédio", disse Sebastião Oliveira, um dos líderes dos sem-teto. "Mas apareceu um monte de gente e começou o vandalismo. Essas pessoas não tinham nada a ver com o momento".
Em bandos, mascarados e com pedaços de pedras e paus nas mãos, os jovens saquearam lojas, destruíram orelhões e lixeiras, formaram barricadas e colocaram fogos em objetos no meio da rua. Um ônibus articulado foi queimado em frente ao Theatro Municipal. Na rua Barão de Itapetininga, uma loja de celulares e uma lanchonete tiveram as portas destruídas.
As lojas fecharam as portas. Dezenas de pedestres se esconderam dentro de prédios e galerias. Durante toda a manhã, as bombas da Polícia Militar compuseram a trilha sonora de guerra na região central. Do alto, helicópteros da polícia seguiam os grupos e orientavam os policiais que estavam no chão.
"Vamos para a prefeitura. A rua é nossa", gritavam alguns jovens. "É o apocalipse", berrou um evangélico. "A guerra vai começar", anunciou um pedestre, correndo para aderir ao quebra-quebra.
Dezenas de pessoas fotografaram e filmaram tudo. Alguns usavam máscaras de proteção cirúrgica para escapar dos efeitos do gás lacrimogêneo.
No cruzamento da rua 7 de Abril com a Xavier Toledo, um grupo derrubou e destruiu uma cabine de fiscalização do transporte coletivo. Em meio à gritaria, o som de um pandeiro persistiu num samba fora de hora. E um morador de rua aproveitou para fazer o seu protesto.
"Esse é o país do futebol. A guerra não é aqui não. É só no Iraque", ironizou.
Na mesma região, um engravatado levou uma pedrada sem ter feito nada, apenas porque estava passando. Um cinegrafista também apanhou dos jovens enraivecidos. Do alto de outros prédios ocupados, pedras eram jogadas na polícia.
Segundo o comandante da operação da PM no centro, Glauco Silva de Carvalho, houve a tentativa de negociar com os ocupantes do prédio durante duas horas. No entanto, moradores começaram a jogar objetos nos policias e então veio o conflito.
O prédio ocupado é a antiga sede do Aquarius Hotel e fica próximo à esquina das rua Ipiranga com a avenida São João, um endereço que virou símbolo da cidade por causa de "Sampa", a canção em que Caetano Veloso declarou seu amor a São Paulo.
Duzentas famílias moravam ali.
"A gente até propôs pagar aluguel, mas os proprietários não quiseram", disse um dos ex-moradores. "Pagaríamos R$ 100 por mês, porque até reformamos o prédio".
São Paulo. A cidade que ergue e destrói coisas belas.

domingo, 14 de setembro de 2014

Reencontro com Cazuza


Apesar do meu grande amor por Cazuza, pintou uma dúvida na hora de resolver se assistiria ou não “Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz. O Musical”, em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. O primeiro motivo é óbvio: está caro ir ao teatro. O segundo é mais ou menos óbvio: os musicais estão na moda e alguns são melhores na divulgação do que no conteúdo. Terceiro motivo, acho que bem compreensível também: é difícil confiar nas críticas hoje em dia (e talvez sempre tenha sido). Então, a gente nunca sabe o que é bom ou não.

Enfim...

O fato é que o amor da antiga adolescência venceu o medo. E fui ver “Cazuza”. O resultado: voltaria mais uma, duas, três vezes.

Talvez seja uma sensação de quem viveu aquilo tudo. Não esqueço o dia em que o cantor e compositor morreu. Não era para ser um susto. Com Aids, ele estava muito mal. A revista “Veja” estampara em sua capa uma foto chocante, com título ainda mais chocante e texto que fez o artista passar mal e precisar ser socorrido, como conta a peça.

Mesmo assim, dei um grito espantado e machucado ao ouvir, pela TV, a notícia sobre a morte. Ali terminou, oficialmente, minha adolescência. Já havia acabado há alguns anos, mas foi nesse dia que acabou de vez. E isso dói.

Encantada pelo espetáculo já nos primeiros minutos, pensei: mas o que faz esse musical ser melhor do que os outros? No caso de “Cazuza”, o despudor é uma boa explicação. Por decisão de Lucinha Araújo, a mãe onipresente, a vida de Cazuza é um livro aberto. Portanto, estão na peça os escândalos, o uso de drogas, os grandes amores gays e até mesmo a agressividade assustadora do poeta em seus últimos anos de vida.

Outra explicação é o grande talento dos jovens atores, músicos e dançarinos. É muito animador ver garotos e garotas brilharem no palco. Assisti ao espetáculo num dia em que Bruno Narchi interpretava Cazuza. Ele alterna as apresentações como Emílio Dantas, consagrado pelo papel no teatro. Bruno é excelente. Não ficou tão famoso como o colega, pelo menos por enquanto. No entanto, também impressiona com a voz e os trejeitos do cantor.

Entendi que o fato de dois atores encarnarem tão bem Cazuza está relacionado a um bem sucedido trabalho de equipe e não ao fato do espírito do cantor baixar em dois artistas diferentes, em dias alternados. Bruno fica parecido com Cazuza no início da fama, quando o artista era um garoto lindo, no meio da trajetória, já afetado pela Aids, e no final, bastante enfraquecido, esquelético, com a voz fraca e na cadeira de rodas. Ou seja, ali há um incrível trabalho de preparação do ator, direção, maquiagem e iluminação. Trabalho de equipe. Mesmo.

Assistir à peça foi também um reencontro com Cazuza. O poeta da minha geração teve apenas oito anos de carreira, deixou uma obra memorável, mas não tão vasta e, talvez, um pouco datada. Durante um tempo, parei de ouvir. No reencontro, resgatei emoções, traduzidas em fortes arrepios em vários momentos do musical.


Como são bons esses arrepios.

Aqui, uma das minhas canções preferidas, "Blues da Piedade"