segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Frei Caneca

Três coisinhas nada à toa sobre a Frei Caneca, uma das minhas ruas preferidas em São Paulo:


Número um 

Foi lá que Raul Seixas, a lenda, passou os últimos meses de sua vida intensa e curta. De bar em bar, entre um show e outro. Os mais velhos lembram do roqueiro quieto, nos balcões da vida.

Como assim, Raul andou pelas mesmas calçadas em que a gente passa apressada, carregando sacolas?

Número dois

Fica na Frei Caneca o alternativo Teatro e Bar Cemitério de Automóveis. Mário Bortolotto, o dramaturgo, o músico, outra lenda, é o dono do pedaço. Ali faz música, bebe e escreve.

Já passei e vi o Mário sentado na varanda, celular na mão, olhos na telinha.

Será que acompanhava a repercussão de um dos seus textos sinceros?

Acho que sim.

Número três

Logo após o Cemitério de Automóveis, tem uma escola de balé. A música clássica escapa pela janela e chama a atenção. Aí a gente olha e vê as bailarinas, clássicas, belas, incomuns na rua escura.

E que rua.

domingo, 12 de outubro de 2014

A infância, sob tensão, num prédio ocupado


Fotos: Su Stathopoulos

Sentada na escadaria do antigo Columbia Palace Hotel, na avenida São João, centro de São Paulo, a menina Maria Eduarda, a Duda, 9 anos, tenta encontrar alguma novidade nos três livros que possui, um deles didático e os outros dois de histórias infantis.

 “Eu gosto muito de ler, mas só tenho esses três livros e estou cansada deles”, revela, enquanto acompanha as tentativas do irmão mais novo, Pedro, 7, de jogar futebol num dos corredores do prédio.

Os dois irmãos são moradores de uma das 40 ocupações feitas por sem teto no centro de São Paulo. Vivem a rotina típica da infância: vão para a escola, brincam, frequentam cursos extras, levam bronca e, às vezes, brigam com amiguinhos.

No entanto, há um clima tenso no dia a dia dos pequenos. Os 200 moradores, alojados no prédio de seis andares desde o dia 3 de outubro de 2010, podem ser expulsos a qualquer momento por causa do processo de reintegração de posse que corre na Justiça de São Paulo. Os adultos falam sobre esse temor o tempo todo. As crianças percebem o nervosismo. O medo fica suspenso no ar.

“Esses dias faltei na escola. Mas não gosto de fazer isso. Queria ter ido”, conta Duda.

O dia da falta é simbólico para os militantes dos movimentos sem teto de São Paulo – e para a própria cidade. Duda não foi para a escola porque a avenida em que mora virou palco de uma guerra entre policiais militares e ocupantes do prédio vizinho, construído para ser sede do hotel Aquarius e então ocupado há seis meses por famílias parecidas com as da menina.

A reintegração de posse do dia 16 de setembro ocorreu em meio a desespero, bombas de efeito moral disparadas pela polícia, gritos, móveis e outros objetos jogados pelos moradores e um conflito que se espalhou pelas ruas da região central.

Bem em frente, no antigo Hotel Columbia, as crianças viram e ouviram tudo. Sentiram medo da violência e também de perder a moradia. Viveram uma tarde invadida pelo cheiro do gás de efeito moral e por sustos causados pelo barulho das bombas.

“Tenho medo de não ter onde viver com minha filha. Medo de precisar morar num lugar em que não encontre serviço para mim e escola para ela”, explica Luzilene dos Santos Silva, mãe de Raíssa, 6, ao justificar sua decisão de viver na região central de São Paulo, num prédio ocupado.  

Segundo a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), mais da metade da população mundial mora hoje em áreas urbanas. Isso inclui um bilhão de crianças. Muitas ainda não têm acesso a escolas, hospitais e áreas de lazer, uma realidade ainda comum nas periferias das grandes cidades.

De acordo com dados do FLM (Frente de Luta por Moradia ), fatores como os baixos salários, desemprego e trabalho informal, especulação imobiliária e finanças públicas “drenadas para o setor parasitário (agiotas e rentistas)” excluem os trabalhadores sem teto das regiões urbanizadas e os empurram para a periferia.

No centro de São Paulo, a vida das mães, pais e de seus filhos é um pouco mais fácil do que nos bairros periféricos. A região oferece uma ampla rede de serviços: escolas, hospitais, centros de lazer, museus, praças.

O filho mais velho da agente comunitária de saúde Vanessa Cristina de Oliveira do Prado, por exemplo, vai todo dia a pé e sozinho para a escola. O adolescente tem 14 anos e, nos quatro anos em que vive na ocupação da São João, já conseguiu frequentar cursos de bombeiro mirim, circo e computação.

O mais novo, de oito anos, costuma passar horas na biblioteca no próprio prédio e também já participou de saraus literários promovidos pelos sem teto. São comuns também os passeios culturais em grupo. 

“Coisas que na periferia são mais difíceis. Se eu sair daqui, não tenho para onde ir. Com o que ganho, pagaria só o aluguel. Aqui, conquistei muita coisa para os meus filhos”, diz a mãe.

E também para ela. Vanessa concluiu o ensino médio e agora planeja ir para a faculdade. Quer cursar farmácia. Ela e os filhos dividem dois cômodos no antigo hotel com outra família, formada por avó e neto. Na hora de dormir, é preciso colocar colchões no chão do quarto. O outro cômodo funciona como cozinha.

Segundo o advogado Benedito Barbosa, o Dito, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, a insegurança provocada pelo medo das reintegrações de posse é o principal problema das meninas e meninos que vivem nas ocupações urbanas.

“No Brasil há a prevalência do direito à propriedade e não do direito à moradia”, critica. “O país nunca teve uma reforma urbana. A lógica da expulsão dos pobres é antiga”.

Dito deixa claros os objetivos dos movimentos que ocupam prédios abandonados no centro de São Paulo: forçar o poder público a investir em projetos de moradias populares.

No dia 24 de agosto, a Prefeitura de São Paulo assinou convênio junto ao governo do estado para o lançamento de licitação de Parceria Público-Privada para habitações no centro expandido. Serão implantadas 14.124 unidades habitacionais. O projeto inclui também a instalação de equipamentos públicos, infraestrutura e áreas de comércio e serviços, com investimento total de R$ 3,5 bilhões.

Sonhos

Ao contrário do que podem pensar os que nunca entraram num prédio ocupado por sem teto, a organização e a limpeza são regras rígidas no prédio do antigo Columbia. Há controle também sobre o uso de álcool e atenção aos conflitos familiares.  

O hotel estava abandonado há quase duas décadas quando virou moradia popular. Homens, mulheres e crianças precisaram tirar muito lixo dos quartos e corredores. Também providenciaram uma reforma para poder usar os banheiros.

Num jardim de inverno do passado, o esforço coletivo transformou em área de lazer um espaço inundado por água suja e apelidado de piscina.  A anacrônica máquina de lavar do hotel, quase uma relíquia, hoje é usada como churrasqueira.

Os meninos e meninas do prédio têm a sorte de ter como vizinha a cenógrafa Nazaré Brasil, 48, uma ativista social preocupada em levar cultura para as crianças da ocupação.

“Quero despertar nas crianças o que elas têm de melhor”, explica.

Entre as atividades lideradas por Nazaré estão sessões num cineclube dentro do prédio, teatro, leitura, passeios, aulas e exposição de desenhos e pinturas.

O prédio todo é decorado com fotos artísticas e quadros produzidos pelos próprios moradores. Num dos passeios, as crianças fotografaram o centro e puderam expressar o pensam sobre a região onde moram. Na biblioteca, os livros infantis dividem espaço com as obras adultas.

“As crianças são discriminadas nas escolas e em outros locais que frequentam. A leitura é uma forma de fugir dessa realidade triste”, afirma Adalberto Rodrigues Soares, 42, um dos coordenadores da ocupação na avenida São João.

Endurecido pelas dificuldades da vida, Adalberto não resiste e chora ao falar sobre a tentativa de abrir o horizonte dos pequenos sem teto.

“É muito triste não ter sonhos”, diz.   

Alheio à tensão que percorre todos os espaços do prédio, Mateus, 8, exerce como ninguém o seu direito ao sonho. Anda de um lado para o outro com sua barraquinha infantil, ótima para as brincadeiras de faz de conta.

“Dá até para fingir que é uma casa”, alegra-se. 



Nas ruas, uma realidade cruel

Diego é o nome de “guerra” do adolescente de 16 anos, um dos andarilhos de São Paulo. Ele vive nos arredores da praça Dom Gaspar há dez anos. Não sabe – ou não revela – onde estão os pais. 

Aprendeu a pedir comida, água, bebida, dinheiro, roupa ou qualquer outra coisa para as pessoas que encontra no caminho.

A reportagem acompanhou uma tarde de Diego no centro de São Paulo. Em poucos minutos, ele conseguiu uma garrafa de água, biscoitos, refrigerante, sanduíches de mortadela e um elogio.

“Você é bonito”, disse a moça loira com quem o garoto conversou rapidamente. Ele piscou, numa resposta charmosa. Ficou feliz.

Mas o menino de rua também sabe conseguir o que quer sem pedir ou usar o seu carisma. Ele rouba e conta sem meias palavras os segredos de seu “ofício”.

“Pego os celulares dos bolsos e as pessoas nem percebem”, diz. “Essa sua bolsa, com a alça fininha, é um perigo. É só puxar”, afirma, em tom de alerta, para a repórter.

Diego não sabe ler ou escrever. Já foi para a escola, mas não deu certo. Rebelde, arrumava brigas e mais brigas. Foi expulso e nunca mais voltou.

Segundo Censo da População em Situação de Rua na Municipalidade de São Paulo, realizado em 2011 pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, 212 crianças e 221 adolescentes vivem em situação de rua na capital, a maioria na região central da cidade.

O pequeno Davi, 2 anos, faz parte desse grupo. Mas, ao contrário de Diego, vive ao lado dos pais, que perambulam pelas ruas centrais e aceitam qualquer tipo de bico ou esmola.

“Todo dia corro atrás. Engraxo sapatos, peço comida, faço qualquer coisa”, conta Wilson, 40, o pai da criança.

Segundo ele, durante a noite a família aluga um quarto, onde ficam as roupas e brinquedos de Davi. À noite, a criança fica num carrinho ao lado dos pais. Dá tchau, manda beijinhos e, com sua simpatia, ajuda a família a ganhar um prato de comida ou dinheiro.

“Mas ele tem tudo que precisa. Não pediu para nascer, então corro atrás para cuidar dele”, garante o pai.

Diego passou a infância sem ter alguém para “correr atrás” por ele. Não sabe o que é brincar.

“A minha brincadeira sempre foi bater nas outras crianças”, afirma.

Resposta ainda mais desconcertante é a do amigo do adolescente, um menino de 13 anos que também vive nas ruas do centro e se nega a dizer o nome.



“Minha brincadeira é usar drogas”, revela, com os olhos cerrados e a voz rouca de tanto cheirar cola e fumar crack.



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Arte, memória, escombros e loucura no antigo hospital

As paredes descascadas e os corredores sombrios do antigo Hospital Matarazzo, na região da avenida Paulista, nunca mais saíram da memória de quem assistiu a peça "O Livro de Jó", nos anos 1990, com a interpretação impressionante do ator Matheus Nachtergaele. Nu e coberto de sangue cênico, Matheus encontrou no espaço o cenário ideal para a atuação visceral.

Este ano o ex-complexo hospitalar recuperou o que parece ser uma vocação para as artes. Até domingo, dia 12, recebe a exposição "Made By...Feito por Brasileiros", que impressiona tanto quanto a encenação teatral de anos atrás.

O hospital está abandonado há duas décadas e foi comprado por um grupo francês para ser transformado num complexo comercial e turístico, com hotel, lojas, restaurantes, etc. Antes disso, 100 artistas foram convidados a fazer intervenções em grande parte dos 27 mil metros quadrados do local.

O resultado é espantoso e imperdível, a começar pela bela arquitetura do complexo e pela sensação de que aquelas paredes carregam muitas histórias - dos nascimentos às mortes.

Uma delas pode ser ficção - ou não. A intervenção artística de Vik Muniz é genial. Ele usou um dos quartos para contar "O curioso caso de Agenor Andrade Filho", cuja ficha médica teria sido encontrada num cofre no porão do hospital, embaixo da antiga sala da diretoria.

Agenor foi um contador solteiro e hipocondríaco, conhecido dos médicos e enfermeiros do hospital. Numa de suas internações, no entanto, a equipe médica encontrou cálculos no rins, extraiu e mandou para exames detalhados. Agenor morreu, vítima de infecção generalizada. Acontece que o especialista que recebeu o vidro com os tais cálculos não viu nada ali dentro, apesar do barulho das pedras no recipiente.

A conclusão foi que o contador conseguiu materializar em seu rim pedras que não existiam. Diz o relato que o médico responsável levou o caso para congressos e foi ridicularizado. É ficção, certo? Mas não parece. A intervenção de Vik Muniz inclui documentos de Agenor, inclusive a certidão de óbito. Tem também uma carta com toda a sua história de saúde. Radiografias. Fotos. E o vidro com os cálculos invisíveis.

Também impressiona o trabalho realizado  em conjunto por Laura Vinci e José Miguel Wisnik na antiga lavanderia do hospital. Ela pendurou dezenas de papéis brancos que voam o tempo todo por causa do vento provocado por ventiladores. Wisnik preparou uma trilha musical perturbadora, assim como a visão dos escombros do local. Ao lado, litros e litros de água de reuso inundam outra parte da lavanderia, numa chuva assustadora e impactante na seca São Paulo.

Há muitos vídeos ao longo da exposição e o som deles percorre os corredores e quartos o tempo todo. São essenciais para as sensações difíceis de explicar para quem ainda não foi ver a "Made By". Entre tantos sons, um atrai em especial. É o barulho provocado pelo papel rasgado por uma artista que se desnuda em frente às câmeras e revela uma angústia palpável, pesada.

- Ela se matou aos 21 anos, pouco depois de produzir essa obra. Já faz algum tempo, mas ainda é uma artista contemporânea, explica o instrutor.

Outro artista, Hector Zamora, define sua intervenção no complexo hospitalar como um delírio. E é.. Ele levou dezenas de vasos de plantas para o andar superior do hospital. A partir dos janelões e das sacadas dos quartos, todos foram jogados ao mesmo tempo para um pátio, provocando barulho ensurdecedor. A encenação foi filmada e é exibida bem perto dos vasos espatifados e das plantas abandonadas à morte. Ou à vida, pois da devastação pode vir o renascimento, como Zamora explica aqui.

Banheiros, a intacta capela e até fossos de elevadores são ocupados por arte. Há loucuras de todos os tipos. Um exemplo: estátuas em ruínas de santos da capela foram levados para uma sala para a cura, à base de ervas. Um grupo de salas escuras assusta e atrai ao mesmo tempo, mas o que a gente encontra no final é acolhedor: puffs fofos e um vídeo em que músicos tocam e dão cores imaginárias a seus instrumentos.

Algumas dicas: use sapatos confortáveis para percorrer toda a exposição. Vá com disposição. E com a cabeça bem aberta.

O antigo Hospital Matarazzo fica na alameda Rio Claro, 190, Bela Vista.

A entrada é gratuita.





terça-feira, 16 de setembro de 2014

Guerra (e samba) no centro de São Paulo

Mãe de três filhos, Iara (o nome é falso, a pedido da entrevistada) morava há seis meses no prédio invadido na avenida São João, quase na esquina com a Ipiranga, no centro de São Paulo. Sabia que nesta terça-feira (16) de manhã os policiais chegariam com uma ordem de reintegração de posse, mas achou que daria para negociar e continuar morando ali.
"Eles entraram jogando bombas de gás e atirando com balas de borracha. Tive que sair pela janela com meus filhos e pular para o outro prédio', contou, chorando. Os filhos, de 16, 13 e 10 anos, escaparam sem ferimentos. Ela ajudou a retirar outras crianças do local e, sentada na calçada, contou que agora vai morar na rua.
Enquanto os moradores saíam ou eram retirados pela polícia após a resistência inicial, grupos de jovens usando a tática black bloc apareceram e começaram um conflito que se espalhou pelo centro de São Paulo.
"A nossa intenção não era guerrear e sim ficar no prédio", disse Sebastião Oliveira, um dos líderes dos sem-teto. "Mas apareceu um monte de gente e começou o vandalismo. Essas pessoas não tinham nada a ver com o momento".
Em bandos, mascarados e com pedaços de pedras e paus nas mãos, os jovens saquearam lojas, destruíram orelhões e lixeiras, formaram barricadas e colocaram fogos em objetos no meio da rua. Um ônibus articulado foi queimado em frente ao Theatro Municipal. Na rua Barão de Itapetininga, uma loja de celulares e uma lanchonete tiveram as portas destruídas.
As lojas fecharam as portas. Dezenas de pedestres se esconderam dentro de prédios e galerias. Durante toda a manhã, as bombas da Polícia Militar compuseram a trilha sonora de guerra na região central. Do alto, helicópteros da polícia seguiam os grupos e orientavam os policiais que estavam no chão.
"Vamos para a prefeitura. A rua é nossa", gritavam alguns jovens. "É o apocalipse", berrou um evangélico. "A guerra vai começar", anunciou um pedestre, correndo para aderir ao quebra-quebra.
Dezenas de pessoas fotografaram e filmaram tudo. Alguns usavam máscaras de proteção cirúrgica para escapar dos efeitos do gás lacrimogêneo.
No cruzamento da rua 7 de Abril com a Xavier Toledo, um grupo derrubou e destruiu uma cabine de fiscalização do transporte coletivo. Em meio à gritaria, o som de um pandeiro persistiu num samba fora de hora. E um morador de rua aproveitou para fazer o seu protesto.
"Esse é o país do futebol. A guerra não é aqui não. É só no Iraque", ironizou.
Na mesma região, um engravatado levou uma pedrada sem ter feito nada, apenas porque estava passando. Um cinegrafista também apanhou dos jovens enraivecidos. Do alto de outros prédios ocupados, pedras eram jogadas na polícia.
Segundo o comandante da operação da PM no centro, Glauco Silva de Carvalho, houve a tentativa de negociar com os ocupantes do prédio durante duas horas. No entanto, moradores começaram a jogar objetos nos policias e então veio o conflito.
O prédio ocupado é a antiga sede do Aquarius Hotel e fica próximo à esquina das rua Ipiranga com a avenida São João, um endereço que virou símbolo da cidade por causa de "Sampa", a canção em que Caetano Veloso declarou seu amor a São Paulo.
Duzentas famílias moravam ali.
"A gente até propôs pagar aluguel, mas os proprietários não quiseram", disse um dos ex-moradores. "Pagaríamos R$ 100 por mês, porque até reformamos o prédio".
São Paulo. A cidade que ergue e destrói coisas belas.

domingo, 14 de setembro de 2014

Reencontro com Cazuza


Apesar do meu grande amor por Cazuza, pintou uma dúvida na hora de resolver se assistiria ou não “Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz. O Musical”, em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. O primeiro motivo é óbvio: está caro ir ao teatro. O segundo é mais ou menos óbvio: os musicais estão na moda e alguns são melhores na divulgação do que no conteúdo. Terceiro motivo, acho que bem compreensível também: é difícil confiar nas críticas hoje em dia (e talvez sempre tenha sido). Então, a gente nunca sabe o que é bom ou não.

Enfim...

O fato é que o amor da antiga adolescência venceu o medo. E fui ver “Cazuza”. O resultado: voltaria mais uma, duas, três vezes.

Talvez seja uma sensação de quem viveu aquilo tudo. Não esqueço o dia em que o cantor e compositor morreu. Não era para ser um susto. Com Aids, ele estava muito mal. A revista “Veja” estampara em sua capa uma foto chocante, com título ainda mais chocante e texto que fez o artista passar mal e precisar ser socorrido, como conta a peça.

Mesmo assim, dei um grito espantado e machucado ao ouvir, pela TV, a notícia sobre a morte. Ali terminou, oficialmente, minha adolescência. Já havia acabado há alguns anos, mas foi nesse dia que acabou de vez. E isso dói.

Encantada pelo espetáculo já nos primeiros minutos, pensei: mas o que faz esse musical ser melhor do que os outros? No caso de “Cazuza”, o despudor é uma boa explicação. Por decisão de Lucinha Araújo, a mãe onipresente, a vida de Cazuza é um livro aberto. Portanto, estão na peça os escândalos, o uso de drogas, os grandes amores gays e até mesmo a agressividade assustadora do poeta em seus últimos anos de vida.

Outra explicação é o grande talento dos jovens atores, músicos e dançarinos. É muito animador ver garotos e garotas brilharem no palco. Assisti ao espetáculo num dia em que Bruno Narchi interpretava Cazuza. Ele alterna as apresentações como Emílio Dantas, consagrado pelo papel no teatro. Bruno é excelente. Não ficou tão famoso como o colega, pelo menos por enquanto. No entanto, também impressiona com a voz e os trejeitos do cantor.

Entendi que o fato de dois atores encarnarem tão bem Cazuza está relacionado a um bem sucedido trabalho de equipe e não ao fato do espírito do cantor baixar em dois artistas diferentes, em dias alternados. Bruno fica parecido com Cazuza no início da fama, quando o artista era um garoto lindo, no meio da trajetória, já afetado pela Aids, e no final, bastante enfraquecido, esquelético, com a voz fraca e na cadeira de rodas. Ou seja, ali há um incrível trabalho de preparação do ator, direção, maquiagem e iluminação. Trabalho de equipe. Mesmo.

Assistir à peça foi também um reencontro com Cazuza. O poeta da minha geração teve apenas oito anos de carreira, deixou uma obra memorável, mas não tão vasta e, talvez, um pouco datada. Durante um tempo, parei de ouvir. No reencontro, resgatei emoções, traduzidas em fortes arrepios em vários momentos do musical.


Como são bons esses arrepios.

Aqui, uma das minhas canções preferidas, "Blues da Piedade" 


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A impressionante memória do Martinelli

Dizem que o edifício Martinelli, no centro de São Paulo, é um dos lugares mal-assombrados da cidade. Não faltam histórias reais para alimentar a lenda.

Nas décadas de 1960 e 1970, o prédio foi abandonado e virou um grande cortiço. Transformou-se em cenário para crimes bárbaros como o do menino Davilson, estrangulado e jogado no poço do elevador.
Lixo acumulado, brigas, desmandos de um chefão que ocupou o palacete do topo e outras mortes deixaram o lugar, antes luxuoso, com ar de maldito.

Imagino que devia ser considerado perigoso até mesmo passar na frente de suas portas.

Essas histórias são contadas por Edson Cabral, o relações públicas do edifício, um guia orgulhoso das informações que possui e sabe muito bem transmitir. Acompanhei as explicações ao lado de um grupo de turistas americanos encantados com a arquitetura e a memória do local, hoje vivendo dias melhores. Cabral dá show de simpatia no topo do prédio. E de graça, sempre vale ressaltar.

O Martinelli é impressionante de todos os lados, fora e dentro, no passado e no presente.

O edifício é o primeiro arranha-céu de São Paulo. Lembro dos mais antigos falando dos grandes prédios nas metrópoles com espanto na voz. Não era comum ver uma obra avançando em direção ao céu, muito menos morar no alto. E eram belos e ricos edifícios, impossível comparar com os caixotes ou as breguices tão comuns hoje em dia.

A obra foi idealizada e construída pelo italiano Giuseppe Martinelli, um empreendedor bem sucedido e meio maluco. Ele planejou erguer o primeiro arranha-céu da América do Sul e sua empolgação natural foi alimentada por pessoas que viam o prédio e sugeriam mais e mais andares.

A construção foi embargada, ameaçou um prédio vizinho e assustou os vizinhos. Eles temiam o desmoronamento do prédio projetado para ter 12 andares e que chegou aos 30, entre as ruas São Bento, Líbero Badaró e a avenida São João. O próprio Martinelli assumiu o projeto arquitetônico a certa altura da "loucura". Fez mais: colocou a mão na massa e trabalhou como pedreiro, lembrando o inicio de sua vida profissional.

O toque de mestre foi a decisão de construir o palacete da família no alto do edifício, para que ele chegasse aos 30 andares e a população ficasse tranquila. Se o próprio empresário e a família moravam no topo, era sinal de que o Martinelli não desabaria.  
Depois da fase decadente, o condomínio foi recuperado e hoje sedia várias repartições públicas. É uma pena, no entanto, que o palacete da família Martinelli esteja desocupado e não possa ser conhecido por dentro. As visitas guiadas são feitas no terraço da mansão, no alto, o que aumenta a vontade de percorrer seus cinco andares. Há a promessa de instalação de um centro cultural ali. Tomara que saia do papel.

É comum o terraço ser escolhido como cenário para filmes, peças publicitárias e editoriais de moda. Não tem bobo no mundo das imagens.

Artesãos espanhóis e italianos foram os responsáveis pelo acabamento no edifício, que inclui escadas de mármore de Carrara, papéis de parede belga, louça inglesa, pinturas espalhadas pelas paredes e arabescos.  
Cabral e as testemunhas do passado dizem que o prédio brilhava a noite por causa da mistura de vidro moído, cristal de rocha, areias puras e pó-de-mica em sua pintura. Sobrou um pouco do brilho para os dias atuais e, alertados pelo relações públicas, todo mundo pode comprovar essa bela extravagância do italiano empreendedor.

A história do Martinelli não para por aí. Passa também pelas dificuldades do empresário, que, cheio de problemas financeiros, perdeu seu sonhado edifício para o governo italiano. Tentaram mudar o nome para América depois que ele foi confiscado, na época em que o governo brasileiro declarou guerra aos italianos.

Conta Cabral que o empreendedor conseguiu enriquecer novamente, dessa vez no Rio de Janeiro. Morreu e deixou uma fortuna para a família, mas a segunda mulher e um dos filhos perderam tudo novamente. Segundo o guia, a viúva e o filho terminaram os dias perambulando pelas ruas do Rio.

As visitas guiadas são feitas de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 11h30 e das 14h às 16h; sábados, das 9h às 15h; e domingos,  das 9h às 13h.

A entrada é pela avenida São João e o telefone para contato é o (11) 3104-2477.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

No cemitério

Há um passeio guiado no Cemitério da Consolação, mas numa tarde de folga a decisão foi de andar sem programação. Sempre acontece alguma coisa interessante. Sempre. Então, entrei  sozinha. Quem sabe não acharia, mesmo sem orientação, as famosas esculturas encomendadas a artistas renomados? Ou túmulos históricos?

O passeio guiado com certeza ajuda muito quem procura informações, mas andar sozinha também é interessante. Quase escrevo divertido, mas ficaria um pouco demais usar essa definição para o lugar visitado.

O primeiro túmulo avistado foi o da Marquesa de Santos, personagem de São Paulo com que já “encontrei”, sem planejar, numa volta sem pretensões pelo centro da cidade.
Na primeira vez, perdi a noção do tempo ao percorrer o solar transformado em museu, no lugar onde a bela dama viveu após ser despachada da corte de D. Pedro I, seu amante. 

Dessa vez, entrei no cemitério e, à direita, vi o túmulo simples, que não remete aos anos de glamour vividos por Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), transformada em marquesa por um gesto apaixonado e cheio de afronta do imperador.

Singelo, o túmulo da paulistana é, no entanto, dos mais interessantes. Rica, poderosa e caridosa, ela é uma das doadoras de dinheiro para a construção de parte do cemitério numa época em que ficou impossível seguir enterrando corpos no interior das igrejas. A doação da marquesa permitiu a construção da capela, próxima ao seu túmulo.

Uma placa informa sobre o gesto da velha dama. Outra pede para os visitantes não acenderem velas ou depositarem objetos no local. Outras três são de supostos beneficiados por graças concedidas por Domitila, conhecida em São Paulo pelos saraus promovidos no antigo casarão e por ser uma mulher de vanguarda.

Solta no cemitério, mas em busca de um pouco de direção, pergunto a um funcionário onde ficam os túmulos mais antigos.

- Ah, fia, não tem isso aqui não. É tudo misturado.

Sem guia, notei que o túmulo do empresário e mecenas Armando Álvares Penteado (1884-1947) é uma das peças valiosas da Consolação, mas não entendi o significado da capela negra e marrom, com oito pilares. Anotei a impressão de ter visto um monumento moderno, com toque oriental. Ao pesquisar, soube que a capela lembra a casa em que o mecenas viveu. O tal toque oriental ficou por minha conta. 

O jazigo da família Siniscalchi, construído no início do século 20, é dos mais bonitos e impressionantes. Moldado pela tradicional Marmoraria J. Savoia, é uma réplica de catedral gótica, com todos os seus detalhes. Uma obra de arte. 

Muito mais simples, mas também impressionante é o túmulo de Maria Judith de Barros, que teria morrido vítima da violência do marido. O túmulo é completamente coberto por placas de agradecimento de pessoas que teriam conseguido milagres com a ajuda da “santa popular”. Não dá para contar, tantas são as placas.

O jornalista Marcelo Duarte, autor da série de livros “O Guia dos Curiosos”, conta na publicação “São Paulo para Curiosos” que nos últimos anos Judith costuma ser muito procurada por vestibulandos desesperados para conquistar uma vaga na faculdade. Muitas das placas que estão ali são de estudantes bem sucedidos em seus objetivos. Sensacional.

Grandioso, como tudo na família, o mausoléu dos Matarazzo ocupa seis terrenos, segue o estilo pós-renascentista e, de tão monumental, chega a ser assustador com suas esculturas em bronze e granito. Ali, lamentei não ter talento para a fotografia. Num dos ângulos, o mausoléu contrasta com um prédio moderno (e feio), todo espelhado, na vizinhança. Passado e futuro se encontram num dos cantos mais silenciosos e escuros do cemitério. Sim, deu medo. 

Mais adiante, a espetacular escultura representando uma mulher cabisbaixa é do artista Antônio Celso, no túmulo de Lydia Piza de Rangel Moreira. Não sei quem são, mas basta olhar para ter a certeza: é uma das obras mais belas do local.  Selfies feitas no cemitério e espalhadas pelas redes sociais confirmam: a escultura é um dos cenários prediletos dos que não resistem ao ato de tirar fotos de si mesmos, em qualquer hora e lugar.

De Victor Brecheret, a clássica escultura Sepultamento, na foto, fica no túmulo da família Guedes Penteado. Mostra Cristo, sua mãe e quatro santas. É obra premiada do grande escultor. Só ela já vale a visita.

Para ler
Numa linguagem divertida e levemente picante, Paulo Setubal conta no livro “A Marquesa de Santos” a história da amante de D. Pedro I, da juventude à fase em que ela entrou em decadência na corte e foi obrigada a voltar a São Paulo.

  

quarta-feira, 2 de julho de 2014

A rua literária no centro de São Paulo

A campanha em defesa do petróleo brasileiro levou o escritor Monteiro Lobato à prisão, amargura e pobreza. Era assim, desgostoso, que ele vivia num apartamento na Barão de Itapetininga, uma das ruas literárias no centro antigo de São Paulo.

Como mostra o livro  "São Paulo Literalmente", do escritor, jornalista e fotógrafo João Correia Filho, foi nessa rua que Lobato morreu, no edifício Jaraguá.

Levei um susto ao ler isso porque já havia passado várias vezes por ali sem saber de nada. O fato da Itapetininga ligar a praça da República ao Teatro Municipal já parecia suficientemente encantador. Hoje fui até o local para ver de perto e com mais atenção o prédio do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Sim, sou dessas.

Pois está lá a placa que informa sobre a morte do grande escritor, na madrugada do dia 4 de julho de 1948, vítima do que a imprensa da época chamava de "espasmo" cerebral. Foi o segundo e fatal espasmo do atormentado escritor na fase final de sua vida.

Dali, o corpo foi levado para a Biblioteca Mário de Andrade, na época biblioteca municipal, também na região. O velório e o enterro, no cemitério da Consolação, provocaram grande comoção. O Brasil perdia um de seus grandes escritores e também um homem cuja visão política não era valorizada como merecia. O sepultamento transformou-se numa das maiores (e raras) homenagens populares a um escritor brasileiro.

Parei em frente à placa no edifício e um moço ao lado virou-se para ver o que eu lia. Ele não havia percebido o que estava registrado ali.

- Monteiro Lobato? Viveu aqui? Morreu aqui? Esse livro que você segura é dele?

Não, era do João, o guia que nos alerta para não andar tão distraídos assim pelas ruas.

Tem mais. O livro mostra que nem só das memórias de Monteiro Lobato vive a Barão de Itapetininga. É preciso estar atento para outras delícias literárias.

Inaugurada em 1949 e um marco na época em que o centro era considerado chique, a Galeria Itá tem vários tipos de lojas no térreo e escritórios variados nos andares. O espaço mais surpreendente fica no nono andar e não é exagero chamar de paraíso dos livreiros. É a Livraria Calil Antiquária, o sebo mais antigo de São Paulo, segundo sua proprietária.

O guia "São Paulo Literalmente" conta um pouco da história da livraria e fala rapidamente sobre Maristela Calil, a proprietária. Senti, durante a leitura, que a livreira é uma pessoa muito simpática. Na visita, a sensação foi comprovada. Uma das melhores conversas dos últimos tempos.

O pai dela, Líbano Calil, deve ter sido uma das pessoas mais interessantes desse mundão. Era louco por livros e comerciante por natureza. Investiu a vida nisso. Passava o tempo todo no meio de seus milhares de exemplares e também entre escritores, que apareciam para os bate-papos. Como Monteiro Lobato.

E não é que a Barão de Itapetininga tem outra surpresa trazida à tona pelas pesquisas do meu amigo? É a Livraria Francesa, no prédio de número 275. Eu sei, eu sei, quem vive em São Paulo e gosta de literatura e cinema francês está cansado de saber onde fica essa pérola. Mas quem não está nesse grupo e não leu um guia como o do João não descobre tão facilmente o local, com vitrine localizada no interior do prédio.

Tudo em francês - filmes, livros, música e o atendimento, para quem precisa que assim seja. E, mais uma vez, uma atendente interessada em conversar sobre as belezas do centro, com muita simpatia.

Quem disse que não existe ternura em São Paulo?

Ternura e literatura resistem.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Iberê

Com o título "Um Trágico nos Trópicos", a mostra sobre Iberê Camargo no Centro Cultural Banco do Brasil (rua Álvares Penteado, 112 - Centro), em São Paulo, revela no título a essência de um dos grandes pintores brasileiros. Alguns textos assinados pelo próprio Iberê e o trabalho dos monitores direcionado às crianças que frequentam a exposição esclarecem a origem da alma trágica: o artista foi menino criado solitário nos campos gaúchos. Seus brinquedos eram os carretéis e eles se transformaram no tema mais recorrente na obra do pintor, da natureza morta à abstração.

Tem também as bicicletas. Elas marcam uma importante fase do artista. Iberê descreveu sua personalidade como a de um andante, um homem que carrega o fardo do passado e cruza desertos. Impossível não pensar em solidão ao ver seus ciclistas em cenários marcados pela bruma.

São pinturas pesadas, até agressivas. Na mostra, vídeos revelam o estilo de pinceladas fortes do gaúcho. É estranho comparar as pinceladas ao rosto sorridente e já envelhecido. As duas coisas não combinam. Ou apenas parecem não combinar. Os vídeos também dão a sensação de que Iberê nunca ficava satisfeito. Seus quadros têm várias camadas de tinta, o que virou uma forte característica.

"Ele tinha a alma atormentada", concluiu uma professora ao visitar a exposição.

É provável. Uma das histórias mais chocantes que já li sobre um artista tem Iberê Camargo como personagem principal. Ele matou um homem a tiros, em 1980. O pintor caminhava por Botafogo a procura de cartões de Natal. O engenheiro Sérgio Areal, 32 anos, saía de seu prédio e discutia com a mulher. Iberê parou para olhar, Areal foi tirar satisfações, os dois se esbarraram, começaram uma briga e o artista atirou. Foram cinco tiros e um assassinato que exilou ainda mais o artista dentro de si mesmo.

O jornalista e escritor Ivanir Yazbeck assina um texto recente sobre esse episódio. Diz que Iberê era programado para matar: fez curso de tiro e andava sempre armado.

Acho "programado para matar" forte demais, mas sem dúvida andar com uma arma mostra disposição para atirar. É para isso que servem as armas, afinal.

Mas como um homem com tantas sombras foi também um dos artistas mais sensíveis do Brasil? De que forma convivem na mesma pessoa o ser violento e o pintor, desenhista, gravurista e escritor que estudou na Europa com grandes nomes das artes plásticas?

É mistério.

A mostra no Centro Cultural Banco do Brasil oferece algumas pistas. Mas, ainda bem, ninguém nunca desvenda totalmente um artista.

Além da mostra, o lugar, por si só, vale a visita. Localizado no centro histórico de São Paulo, o CCBB

fica num prédio de 1901 e reúne espaço para exposições, cinema, teatro e uma charmosa cafeteria. Tem muitas atrações, a começar por sua arquitetura neoclássica

O local tem um serviço de vans que fazem o transporte gratuito entre um estacionamento na rua da Consolação, 228, e a esquina da rua 15 de Novembro com a rua da Quitanda, a 20 metros de sua entrada, com parada na estação República do Metrô depois das 20h. É para ninguém ter a desculpa de que é perigoso andar a pé pelo centro histórico à noite.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Zuzu

É de Chico Buarque (e como não seria?) a melhor definição para Zuzu Angel. Foi uma solitária mãe da Praça de Maio, em pleno Brasil.

A história de Zuzu é comovente e extraordinária. Pioneira na criação de uma moda genuinamente brasileira, ela mudou o rumo de sua vida ao não aceitar a morte do filho, Stuart, torturado com requintes de crueldade pela ditadura militar. Zuzu recorreu a autoridades e artistas do Brasil e do mundo para encontrar o filho. Ou os restos mortais dele, até hoje não localizados.

A mineira de Curvelo começou a carreira criando saias em casa e, com seu talento, levou a moda brasileira para fora. Conquistou clientes famosas, como Joan Crawford e Liza Mineli. Zuzu não teve medo do cenário adverso da época. Eram raras as mulheres estilistas, mas isso não a intimidou. Pelo contrário. "Eu sou a moda brasileira", dizia. Além disso, ousou ao utilizar elementos típicos do país, como a renda e estampas de pássaros. Separada do marido norte-americano, criou os três filhos ao mesmo tempo em que conquistava o reconhecimento profissional.

Na Ocupação Zuzu, exposição em cartaz no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149, de graça) até o dia 11 de maio, o primeiro impacto é causado pelo som dos sinos, logo na entrada. Deve ser uma referência à origem mineira. E lembra um ritual fúnebre de antigamente. Para quem conhece a trajetória de Zuzu apenas a partir da morte do filho, essa primeira parte da ocupação é surpreendente. Mostra bem a importância da estilista para a moda brasileira. Talvez ninguém tenha chegado a esse patamar desde então.

Zuzu criou estampas e um tecido desenvolvido especialmente para dar leveza a suas peças. Usava chitas e fitas quando isso ainda era considerado cafona. Não tinha receio de aproveitar as riquezas regionais do país para embelezar saias, calças e vestidos. Era chique e, em sua última entrevista, resumiu seu grande sucesso dizendo que as mulheres poderosas também gostavam de pagar o justo por suas roupas.

Não por acaso, imagino, a segunda parte da Ocupação Zuzu acontece no andar debaixo do Itaú Cultural. Não tem como descer a escadaria sem pensar nos porões da ditadura. E é uma segunda parte de luto, como os vestidos pretos usados pela estilista quando descobriu a morte do filho, em 1971, logo após ser preso por agentes da Aeronáutica.

Stuart Angel era dirigente do MR-8, uma das organizações clandestinas de combate à ditadura. A cena de morte descrita por outro preso político, Alex Polari, é das mais aterrorizantes dos anos de chumbo: Stuart teria sido arrastado por um jipe, com o corpo todo machucado e a boca no cano de descarga.      

Mais uma vez, Zuzu precisou de muita coragem para conhecer os detalhes da morte e começar sua luta, sempre de luto. Montou um dossiê que entregou para diversas autoridades, inclusive Henry Kissinger, durante visita do então secretário de estado norte-americano ao Brasil. Criou um cinto com crucifixos pendurados - é uma das peças mais bonitas e emocionantes da exposição. Associou à sua marca o desenho de um anjo de olhos espantados. Era seu filho - e tantos outros torturados. Mandou imprimir a foto de Stuart em santinhos que distribuía para políticos, artistas, jornalistas e militares.  

Também não é à toa que um imenso telão reproduzindo o mar foi instalado nessa segunda parte da ocupação. O fundo do mar é o provável destino dos restos mortais de Stuart. Outros sons impressionam: a reprodução da leitura do AI-5 é seguida de uma entrevista em que Zuzu fala, emocionada, sobre a tortura que levou o filho à morte.

No meu caso, outro som acompanhou todo o percurso da ocupação. Um som interno, porque não ouvi a música tocando ali, mas ela não saiu da minha cabeça: "Angélica", a composição em que Chico faz sua homenagem a Zuzu. Foi para o cantor e compositor que a estilista entregou uma carta com um alerta: assim como o filho, ela corria o risco de ser morta por denunciar as atrocidades da ditadura. E foi, num acidente de carro anos depois reconhecido como armadilha.

Entre os documentos expostos, estão cartas que a filha mais nova de Zuzu, Hildegard, recebeu ao reconstituir a saga da mãe. São documentos em que testemunhas dos últimos momentos da estilista se oferecem para ajudar. Uma delas conta que foi procurada por Zuzu dois dias antes do acidente de carro, em 1976. Ela estava muito atormentada com as perseguições sofridas. Outra testemunha ouviu o acidente, chegou minutos depois ao local e encontrou vários carros oficiais cercando o local.

E tem uma foto. E que foto. Mostra um detalhe do carro amassado e a placa caída ao lado de um sapato de salto. O fim de Zuzu.  

"Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho

Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar"

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sampa

O baiano Caetano Veloso, com “Sampa”, revela a cidade feia e bonita ao mesmo tempo. O susto de quem chega. A deselegância. O privilégio de ser o lugar de Rita Lee. A poesia concreta. E a gente diversa. Os novos baianos, africanos, italianos, cearenses, cariocas, interioranos... Caetano morou num edifício na rua São Luís, perto da Praça da República e da esquina que virou mito por causa de sua canção: a que une as ruas Ipiranga e São João. “Sampa” fala sobre esse período em que o Centro de São Paulo foi tropicalista. O baiano se inspirou na cidade e vice-versa. Fez também uma homenagem a Paulo Vanzolini ao usar uma frase melódica de “Ronda” no último trecho de sua “Sampa”. O compositor e zoólogo foi outro grande tradutor de São Paulo e sua boêmia. Uma das mais recentes caminhadas noturnas promovida pelo grupo que não desiste de revitalizar o centrão de São Paulo teve como tema esses encontros: a Ipiranga com a São João, Caetano e Vanzolini, a gente de toda parte com a São Paulo dura, nua, crua e muito bela. É só olhar e se entregar. Essa cidade é sedutora. O projeto Caminhada Noturna foi idealizado por Carlos Beutel, dono de restaurante vegetariano e militante pela recuperação do Centro. Os passeios são realizados nas quintas-feiras, a partir das 20h. O encontro é sempre na frente do Teatro Municipal, cenário que por si só é uma grande atração. A pé, grupos de 50 a 100 pessoas percorrem trajetos no Centro e recebem informações históricas e arquitetônicas. As noites sempre terminam em pizza, em outro lugar que é a cara de São Paulo: um dos vários restaurantes localizados no térreo do Edifício Copan. Logo de cara, Beutel e seus parceiros dão o recado: não é tão perigoso assim caminhar pelas ruas. Ninguém precisa passar a vida circulando apenas em shoppings. Ninguém merece. A violência existe, é óbvio. Mas não é catastrófica como querem nos fazer acreditar. Dá para caminhar em grupo pelo centrão de São Paulo sem medo de ser feliz. A caminhada sempre tem especialistas convidados para falar o que sabem sobre os pontos visitados. Uma das informações: a Ipiranga com a São João é alvo de um processo de tombamento como patrimônio imaterial de São Paulo. A música de Caetano fez o local virar um símbolo eterno. Beutel e outros defensores da preservação do Centro acham que falta algo a mais ali. Uma estátua de Caetano, quem sabe? Como faz o Rio com seus personagens marcantes. Acho que não falta é nada. A arquitetura da região central, a história da urbanização da região, a música e o Bar Brahma, localizado na famosa esquina, já bastam para atrair moradores e turistas interessados em conhecer melhor a cidade. Com shows de nomes como Cauby Peixoto e Ângela Maria, o Bar Brahma faz sua parte para manter o Centro vivo. O grupo da caminhada noturna também. Dezenas de sem-teto dormindo nas ruas e sujeira espalhada por todos cantos nos lembram o tempo todo que ainda falta muito. O que não dá é para desistir no meio do trajeto. As belas fotos são de Su Stathopoulos

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Copacabana de Tito Madi

Matéria publicada no jornal BOM DIA, em 2011 A Copacabana em que Tito Madi conheceu o sucesso, na década de 1950, era noturna. Músicos se apresentavam nas boates da moda e, quando tinham folga, entravam para assistir os shows dos amigos. Eram companheiros, trocavam parcerias e indicações de trabalho. Uma época que deixou saudade. "Era maravilhosa", define Tito, aos 81 anos. "Sinto falta dos colegas como Lúcio Alves, Dolores Duran, Dick Farney, Elizeth Cardoso. A gente tinha amizade. Agora um quer derrubar o outro". Também sente falta de cantar. O cantor e compositor luta para recuperar os movimentos do lado esquerdo do corpo, perdidos há três anos, por causa de um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Faz fisioterapia diariamente, tenta caminhar sozinho durante os exercícios e, quando conseguir melhorar, pensa em voltar a levar seu rico repertório de canções aos vários cantos do Brasil. "Estou querendo aceitar que as notas altas eu não alcanço mais", lamenta, chateado. Acha que o público vai perceber. Está difícil encarar isso como um fato da vida. A Copacabana em que o BOM DIA encontrou Tito, na semana passada, estava ensolarada, movimentada, cheia de luz no apartamento de sala ampla em que vive ao lado de Gabi, a cachorrinha vira-lata adotada numa feira de animais. "Ela dorme comigo", revela. O músico é viúvo há 18 anos, tem dois filhos adultos e quatro netos que sempre o visitam. Conta com a atenção de duas cuidadoras, em esquema de revezamento. Uma delas, Cremilda, baiana criada em São Paulo e agora no Rio, se preocupa até com a imagem do patrão nas fotos. No momento, Tito espera a arte vencer a burocracia para ver lançado um programado DVD em que cantores consagrados interpretarão uma seleção de suas canções. Ele compôs cerca de 500 ao longo da vida musical, iniciada em Pirajuí, no interior de São Paulo, ao lado do pai e dos irmãos, amadores. Filho de pais libaneses, Tito nasceu na cidade de 22 mil habitantes e saiu de lá professor formado, aos 20 anos, mas com o ritmo brasileiro já instalado no coração. Para sempre. Hoje, na amada Copacabana, prefere o dia. A noite mudou muito. Antes, era musicalmente rica. "Eram dezenas de boates", lembra. Todas fechadas ou transformadas em bares. No livro "Chega de Saudade", sobre a história da bossa nova, o escritor Ruy Castro descreve o músico como um homem com "reservas inesgotáveis" de carinho. Parte desse estoque foi gasto com João Gilberto, considerado o criador do novo ritmo, um baiano amalucado que apareceu no Rio da década de 1950 e surpreendeu todos com seu enorme talento. No auge do sucesso por causa de "Chove lá fora", de 1957, Tito tentou conseguir espaço para o arredio João Gilberto nas boates da moda e emprestou seu apartamento ao amigo tradicionalmente sem-teto. Era como um irmão mais velho. Não deu certo. Como fez com outros amigos nessa fase inicial da carreira, João foi ficando e, segundo Tito, tinha desculpas clássicas para não comparecer à gravadora que o lançaria. "Ele falava: o Tonzinho está me atrapalhando, não quer fazer o arranjo". Tonzinho era Tom Jobim. Tito gastava com o amigo. Ele e um cantor italiano, vindo de São Paulo, se alojaram na casa e dali não saíam. Foram seis meses de hospedagem gratuita, com direito a café da manhã, almoço e jantar.Até que um dia o próprio Tito resolveu ir embora. E foi, com todos os móveis num caminhão de mudança. Depois, veio a história do violão. Os dois ex-amigos se encontraram na entrega de um prêmio, em São Paulo, discutiram por causa de um violão que João não parava de dedilhar, apesar dos pedidos de silêncio e.... o instrumento foi quebrado na cabeça de Tito. "Até hoje tenho a cicatriz", conta o compositor. Foram dez pontos e um inquérito policial que levava o baiano a ligar para o pirajuiense."Ah, o Vinícius [de Moraes] pediu para negar tudo", recorda Tito, imitando o jeito de falar do músico rival. Num show em 2008, João cantou "Chove lá fora", gesto interpretado por Tito como uma retratação. Convidado para assistir, não foi, mas sabe que o número terminou em aplausos. "Tenho o coração aberto", diz sobre o antigo "irmãos mais novo". Mas tem vontade de revê-lo? "Não, vontade não tenho. É capaz dele querer ficar". Como é natural numa vida de 81 anos, Tito tem lá seus arrependimentos. Um deles é não ter frequentado o apartamento de Nara Leão, em que foi gestada a bossa nova, movimento musical nascido no Rio da década de 1950. Já conhecido por causa de "Chove lá fora", achou que não precisaria mais passar as noites trocando ideias sobre canções com um grupo de jovens. Atribui a essa ausência o fato de muitas vezes ser esquecido como um dos criadores da bossa nova, apesar dos estudiosos o apontarem como precursor. "Foi um erro não ter ido". Outro arrependimento é surpreendente. Bom de bola, Tito recebeu, na juventude, convites para fazer testes em clubes. Entre eles o Noroeste, que recusou por ser torcedor do rival BAC (Bauru Atlético Clube), e o São Paulo, seu time no estado em que nasceu. "Deveria ter ido para ficar com a camisa, tirar fotos", diz, meio brincando, meio sério. O ponta-esquerda já estava entregue às melodias, não havia como dividir as noitadas de cantoria profissional com os treinos matutinos.Ou havia? "Os jogadores de hoje não vivem na noite?" Na época dos convites, Tito já morava em São Paulo, contratado pela TV Tupi. Visitava Pirajuí e Bauru por causa da família. As duas cidades, junto com o Rio de Janeiro, formam seu trio preferido. Compôs homenagens aos dois municípios do interior e fez várias apresentações por aqui, até ser obrigado a parar. Da capital paulista, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro. Fez sucesso na Tupi carioca e na Rádio Nacional, o sonho de todos os cantores. Ganhou fama, mas não muito dinheiro. Apenas o suficiente para uma vida tranquila, sem luxos. "Se fosse outro país, ficaria milionário apenas com Chove lá fora ", constata. O compositor teve a oportunidade de fazer uma turnê de seis meses pela Europa, abrindo os shows do grupo The Platters, que gravou três de suas canções. "Achei que não estava preparado. Pipoquei". Em Nova York, nos Estados Unidos, cantou no restaurante Via Brasil, em 1987. A pedidos do público, foram três horas e meia de apresentação. Com muita honra.