terça-feira, 28 de abril de 2015

O dia em que Fernandona aplaudiu Abu

Há dois, três anos, assisti Fernanda Montenegro na peça "Viver sem tempos mortos", obra inspirada na correspondência de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Todos, no teatro, estavam ávidos pelo talento impressionante da atriz. Importava pouco o texto denso dos existencialistas. E Fernandona, no final, contou que sempre representa para um coletivo. Usa toda a sua energia e respeito para conquistar o público. Naquele dia, no entanto, foi diferente. Ela atuou para uma só pessoa da plateia: Antônio Abujamra, o Abu, homem dos palcos que inspirou a grande dama. Fernanda, elegante e emocionada, abriu mão dos "bravos" tão constantes em sua carreira e, naquela noite, aplaudiu Abu.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

É feio. E é bonito

Cruzo diariamente algumas das ruas sob o Elevado Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, na região central de São Paulo. Sempre penso: como deixaram o Maluf fazer isso? Por que as pessoas não foram para a rua protestar, não deitaram no asfalto, não impediram o trânsito, não mandaram ele construir o monstrengo na porta da casa dele?

Dia desses, um amigo respondeu o que eu já sabia.

O Minhocão foi construído na década de 1970, em plena ditadura militar. Maluf, prefeito nomeado pelos militares, fazia o que bem entendesse em São Paulo. E entendeu que aquele monte de concreto sinuoso era o melhor para agilizar o trânsito na região e, claro, para alavancar a carreira política dele.

Os moradores dos bairros afetados não foram consultados, isso talvez nem existisse na época. Para dar um toque a mais no absurdo, o prefeito biônico deu o nome de um ditador dos "anos de chumbo" para a obra sem poesia. Costa e Silva, eis o nome da "cicatriz" urbana.

Imagino o que os moradores dos diversos edifícios localizados rentes ao pontilhão sentiram ao abrir a janela e ver a paisagem drasticamente transformada. Segundo os ativistas do movimento Parque Minhocão, os veículos chegam a passar a apenas cinco metros de alguns dos apartamentos localizados ao longo do percurso.

Numa caminhada pelo elevado, que atualmente fica fechado para o tráfego de veículos durante todo o dia nos domingos e feriados e também durante a noite, vi uma cena inacreditável. O Minhocão praticamente encosta numa das sacadas. Isso significa que, além do barulho e da poluição no dia a dia, basta um pulo para qualquer pessoa entrar no apartamento, nos dias em que o elevado está aberto aos pedestres.

Os tempos são outros e hoje em dia o destino do Minhocão é alvo de discussões, debates, projetos e ideias que circulam sem restrições. O mais recente Plano Diretor da cidade prevê que seja desativado progressivamente até ser demolido ou transformado em parque.  

Fracasso urbanístico, obra polêmica, desastre, culpado pela degradação dos bairros no entorno, símbolo da falta de planejamento, aberração... O fato é que o elevado com nome de ditador foi incorporado à paisagem urbana, virou cenário para filmes, novelas e fotos. É sim a cara de São Paulo.Uma das caras. Mais recentemente, por causa dos horários em que fecha para o trânsito, foi assumido por milhares de moradores como espaço de lazer.

Num domingo à tarde qualquer, vira quadra de futebol, pista de corrida e caminhada, ciclovia, terraço para churrasco e piquenique, palco de teatro, encontro de amigos fãs da maconha, entre outras utilidades. É bonito ver tudo isso.  

Ali acontece, de forma espontânea, o sonho dos movimentos que defendem a ocupação das ruas como atitude para exercer o direito à cidade: a população se apropriou do espaço destinado originalmente apenas aos veículos.

E, bem... Do alto,




o Minhocão é bonito, inclusive no que diz respeito à decadência dos prédios no seu entorno. A feiura tem sua belezura, inspirou-se outro amigo. Vários símbolos de São Paulo são avistados numa caminhada pelo elevado: o Copan, a igreja de Santa Cecília, o Castelinho da rua Apa, a praça Roosevelt, os inferninhos, grupos de teatro que transformam as janelas em pequenos palcos, enfim, a vida que segue ali, bem perto dos nossos olhos.

Para saber mais sobre o movimento que defende o Parque Minhocão, veja aqui.

 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Foi um rio...

Tenho muita inveja de quem canta sambas antigos de cor. A letra toda, sem errar, com ritmo, nas rodas e nos espetáculos. Aconteceu ontem, no show do Paulinho da Viola, no Sesc Pinheiros. Um casal maduro saboreou a apresentação com o gosto especial de conhecer todas as canções, sem pular nenhuma. Sentada uma cadeira à frente, ouvi tudo. Eles cantaram suave, como Paulinho merece. Então, o sambista contou a história de seu maior clássico, "Foi um rio que passou em minha vida". Ao ser lançada em São Paulo, a homenagem à Portela foi vaiada. O casal não se conformou:
- Mas como uma música dessas foi vaiada?, questionou o homem.
- É São Paulo. Nós somos assim, respondeu, conformada, a mulher.
Pode ser. São Paulo é enfezadinha mesmo. Mas ontem aplaudiu de pé a canção do príncipe carioca.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Caixa Cubo - a música brasileira resiste

“Arrasta essa gente aí, Pimentinha”, pediu Vinicius de Moraes. O bilhete, claro, era para Elis Regina, que entraria no palco do I Festival Nacional da Música Popular Brasileira para defender “Arrastão”, um clássico dos festivais, da música brasileira e da parceria entre Vinicius (letra) e Edu Lobo (música).

“Arrastão” venceu o festival realizado em 1965 e consagrou Elis. Foi um marco. A cantora, ainda com o visual anos 50 de Porto Alegre, ignorou as regras do canto minimalista da bossa nova e soltou o vozeirão. Soltou também os braços no estilo hélice giratória.  Inesquecível.

“Olha o arrastão entrando no mar sem fim
He, meu irmão, me traz Iemanjá pra mim”

No show “Redescobrir”, Maria Rita fez as pazes definitivamente com a memória da mãe ao girar os braços delicadamente na segunda parte da canção, uma das interpretadas na homenagem a Elis.

Na plateia dos espetáculos da turnê, fãs antecipavam o gesto que simbolicamente liga as duas grandes cantoras, mãe e filha que pouco se conheceram.

Reencontrei “Arrastão” na segunda-feira pós-Páscoa. Depois do feriadão, o dia tinha tudo para ser tedioso do início ao fim. Não foi, pelo menos em sua parte final.

A música de Edu Lobo, em um arranjo jazzístico, foi uma das tocadas no show de lançamento de “Misturada”, álbum do grupo Caixa Cubo Trio, formado pelos músicos Henrique Gomide (piano), João Fideles (bateria) e Noa Stroeter (baixo).

Os três viveram os últimos anos entre o Brasil e a Holanda, onde cursaram mestrado no Real Conservatório de Haia. Intercalaram estudos, ensaios, gravações e apresentações na Europa. Têm cara e jeito de meninos, mas já estão escolados.

O projeto Caixa Cubo é múltiplo e permite várias formações e propostas estéticas. Do samba ao jazz, passando pelo baião. Ou vice-versa.

Preciso dizer: fiquei chocada, no bom sentido, com a combinação juventude-dos-músicos mais grande-talento-dos-mesmos. Como pode, com aquelas caras de garotos, já terem chegado ao alto nível que quem estava no Sesc Consolação viu, ouviu e aplaudiu?

De acordo com o crítico Carlos Calado, o trio é a prova de que a falta de interesse da juventude pela música instrumental não passa de uma falácia.

Eles chegaram ao Sesc Consolação após participar de festivais de jazz na Europa e se apresentaram para uma plateia que reunia vários músicos experientes.

Não sou capaz de ler pensamentos, mas aposto em algo pairando por todas as mentes presentes: a genial música brasileira sobrevive.

“Misturada” resume bem o que os músicos do trio Caixa Cubo gostam de fazer: experimentar formas diferentes de tocar, não ficar presos a estilos, ir da música clássica à eletrônica, propor parcerias, renovar e, ao mesmo tempo, ter orgulho das influências do passado, citadas o tempo todo.

O álbum foi produzido por Rodolfo Stroeter, instrumentista do grupo Pau Brasil, entre outras dezenas de atribuições musicais. Ele é pai de Noa e, ao ouvir os garotos tocarem um repertório pronto nos ensaios e estudos, começou a bem sucedida produção.  

Assim como a apresentação do trio Caixa Cubo, os espetáculos instrumentais de toda segunda-feira à noite são de graça no Sesc Consolação (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque).

No final do show de lançamento de “Misturada”, os músicos responderam algumas perguntas do público e ouviram uma solicitação direcionada aos produtores do Sesc: “Levem esses músicos para todas as unidades”.

Sim, levem. Todo mundo merece ouvi-los.

A foto é do site do trio.