domingo, 19 de julho de 2015

O homem velho

O tempo passou para ele. O homem está gasto. Na blusa de frio, cheia de pequenos rasgos - gola, ombro e cotovelo. Na botina cano curto, sola carcomida, um lado menor que o outro. Nas mãos, levemente trêmulas. Na pele, enrugada. Na calça, velha. Nos cabelos, brancos e ralos. No repertório, antigo e resistente. Ele grita "isso é Brasil" ao ouvir Ernesto Nazareth. Nas emoções - chora junto com o músico diante da valsa. Menos os olhos. Estes, seguem. Cobiçosos. Menos a música. Ele carrega o cavaquinho para tocar aqui, ali.

(Inspirado em personagem real que frequenta as rodas de choro da Biblioteca Mário de Andrade)   

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Artigas, o gênio perseguido

Um dos grandes nomes da arquitetura moderna brasileira, Vilanova Artigas participou da criação da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e formou toda uma linhagem de profissionais espalhados pelo Brasil.

Em suas aulas, defendia com vigor a importância social da arquitetura. Queria que suas obras fossem compreendidas por todos, independente do repertório. Ao falar sobre o prédio da FAU-USP, divertia-se com a própria ousadia, mencionava a ausência de portas e o fato do prédio ser um lugar onde não faz frio ou calor.

Há Artigas em obras assinadas por vários outros arquitetos.

Revolucionário, corajoso, formador, referência, humanista.

Mesmo com tudo isso, foi aposentado compulsoriamente pela USP em 1969, por causa do AI-5, o ato institucional que endureceu ainda mais a ditadura militar. O motivo é o mesmo que justificou outras perseguições, torturas, mortes e exílios: era comunista.

Esse episódio é lembrado agora, em 2015, ano em que o arquiteto genial completaria 100 anos. O centenário é marcado por exposições, documentário, livro, visitas a obras, debates e bate papos.

Então, ressurge esse episódio inacreditável da história brasileira.

Em 1980, com a anistia, Artigas voltou à USP. A universidade, com toda a sua crueldade burocrática, permitiu que ocupasse apenas a cadeira de professor assistente. Logo ele, um dos pais da arquitetura moderna, o homem que usou toda a sua capacidade crítica e o humanismo para receber as influências externas, transformá-las e criar o novo, o ousado, o marcante.

Em um dos depoimentos colhidos para a homenagem ao centenário, um ex-aluno, José Armênio de Brito Cruz, conta que Artigas às vezes mostrava o seu holerite. O criador de obras emblemáticas em São Paulo e outras cidades ganhava o equivalente a R$ 500.

Outro aluno, Rui Ohtake, conta que o mestre terminava a aula e não ia embora. Gostava de conversar com os estudantes e esquecia os compromissos do escritório.

Quatro anos depois da anistia, para voltar a ser professor titular, Artigas foi obrigado pela USP a se submeter a um concurso público...

Conta Reginaldo Forti, genro do arquiteto, que ele levou a sério. Trancava-se em seu escritório para estudar, se preparar para as provas escrita e oral, enfim, para a banca examinadora.

Passou no concurso com nota 10, é óbvio, e foi reintegrado à universidade que ajudou criar. A prova na banca examinadora virou um ato político com a presença de muitos estudantes e jornalistas. Em entrevista, após a prova, Artigas deixou seu protesto. Disse que a grande universidade fez com ele uma molecagem medieval.

Sete meses depois, ele morreu.

Paulo Markun, amigo da família, considera importante lembrar nos dias atuais que a principal universidade brasileira, o centro de pensadores, foi capaz de se submeter à imbecilidade dos ditadores brasileiros. A palavra imbecilidade é por minha conta.

Não foi só isso. Antes, Artigas precisou passar um período de exílio no Uruguai. Foi encontrado por amigos na miséria, em um cortiço, Também arquiteto modernista, também perseguido, Paulo Mendes da Rocha participava nessa época de um esquema de "guerrilha" que permitia a Artigas encontrar a mulher e os filhos em um "aparelho" da resistência nos anos de chumbo.

Entre os principais projetos de Artigas em São Paulo estão o estádio do Morumbi (1953), o edifício Louveira (1946), no Higienópolis, e o prédio da FAU-USP (1961), este considerado sua obra magna.

“A FAU é um espaço fluido, integrado, somático. A pessoa não sabe se está no primeiro andar, no segundo ou no terceiro”, dizia sobre o projeto para a USP.

O Louveira, com os dois blocos "soltos" do chão intercalados por um jardim integrado à praça Vila Boim, virou arte urbana e histórica. É programa cultural passar em suas calçadas, olhar para as janelas do tipo guilhotina, subir as rampas, caminhar pelo jardim, apreciar o vanguardismo, a ousadia.

Muito do arquiteto está na Ocupação Artigas, no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149). As ocupações desse que é um dos melhores centros culturais da cidade incluem debates e visitas temáticas. No caso de Artigas, há visitas programadas a várias de suas obras, sempre aos sábados, de manhã. Uma oportunidade incrível.

O documentário "Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz" está em cartaz no Espaço Itaú.

As obras estão todas por aí.





As fotos do Louveira, encontradas na internet, são de Cristiano Mascaro (preto e branco) e da revista Casa Vogue (colorida).

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Um abraçaço

A caminho do trabalho, no Centro de São Paulo, observo um velho japonês, de óculos modernos. Ele caminha com dificuldade. Os passos são curtos, meio arrastados, de soquinho. Eu pensava nas contas a pagar. Olhei rapidamente. Também rapidamente, pensei no passado daquele senhor, agora caminhando sozinho. Sempre penso no passado dos velhos e velhas que agora caminham sozinhos.
Então ele me abordou.
- Onde vai assim?
Assim como?
De xale verde, cabelos molhados do banho, calça jeans um pouco justa, sapatilha preta, batom rosinha, preocupada com o mês que não fecha.
- Vou trabalhar.
- Onde?
- Logo ali em frente.
- Ah, bom trabalho. E me dá um abraço.
Eu dei.
E ele continuou seu caminho, sorridente.
Eu também.