segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A impressionante memória do Martinelli

Dizem que o edifício Martinelli, no centro de São Paulo, é um dos lugares mal-assombrados da cidade. Não faltam histórias reais para alimentar a lenda.

Nas décadas de 1960 e 1970, o prédio foi abandonado e virou um grande cortiço. Transformou-se em cenário para crimes bárbaros como o do menino Davilson, estrangulado e jogado no poço do elevador.
Lixo acumulado, brigas, desmandos de um chefão que ocupou o palacete do topo e outras mortes deixaram o lugar, antes luxuoso, com ar de maldito.

Imagino que devia ser considerado perigoso até mesmo passar na frente de suas portas.

Essas histórias são contadas por Edson Cabral, o relações públicas do edifício, um guia orgulhoso das informações que possui e sabe muito bem transmitir. Acompanhei as explicações ao lado de um grupo de turistas americanos encantados com a arquitetura e a memória do local, hoje vivendo dias melhores. Cabral dá show de simpatia no topo do prédio. E de graça, sempre vale ressaltar.

O Martinelli é impressionante de todos os lados, fora e dentro, no passado e no presente.

O edifício é o primeiro arranha-céu de São Paulo. Lembro dos mais antigos falando dos grandes prédios nas metrópoles com espanto na voz. Não era comum ver uma obra avançando em direção ao céu, muito menos morar no alto. E eram belos e ricos edifícios, impossível comparar com os caixotes ou as breguices tão comuns hoje em dia.

A obra foi idealizada e construída pelo italiano Giuseppe Martinelli, um empreendedor bem sucedido e meio maluco. Ele planejou erguer o primeiro arranha-céu da América do Sul e sua empolgação natural foi alimentada por pessoas que viam o prédio e sugeriam mais e mais andares.

A construção foi embargada, ameaçou um prédio vizinho e assustou os vizinhos. Eles temiam o desmoronamento do prédio projetado para ter 12 andares e que chegou aos 30, entre as ruas São Bento, Líbero Badaró e a avenida São João. O próprio Martinelli assumiu o projeto arquitetônico a certa altura da "loucura". Fez mais: colocou a mão na massa e trabalhou como pedreiro, lembrando o inicio de sua vida profissional.

O toque de mestre foi a decisão de construir o palacete da família no alto do edifício, para que ele chegasse aos 30 andares e a população ficasse tranquila. Se o próprio empresário e a família moravam no topo, era sinal de que o Martinelli não desabaria.  
Depois da fase decadente, o condomínio foi recuperado e hoje sedia várias repartições públicas. É uma pena, no entanto, que o palacete da família Martinelli esteja desocupado e não possa ser conhecido por dentro. As visitas guiadas são feitas no terraço da mansão, no alto, o que aumenta a vontade de percorrer seus cinco andares. Há a promessa de instalação de um centro cultural ali. Tomara que saia do papel.

É comum o terraço ser escolhido como cenário para filmes, peças publicitárias e editoriais de moda. Não tem bobo no mundo das imagens.

Artesãos espanhóis e italianos foram os responsáveis pelo acabamento no edifício, que inclui escadas de mármore de Carrara, papéis de parede belga, louça inglesa, pinturas espalhadas pelas paredes e arabescos.  
Cabral e as testemunhas do passado dizem que o prédio brilhava a noite por causa da mistura de vidro moído, cristal de rocha, areias puras e pó-de-mica em sua pintura. Sobrou um pouco do brilho para os dias atuais e, alertados pelo relações públicas, todo mundo pode comprovar essa bela extravagância do italiano empreendedor.

A história do Martinelli não para por aí. Passa também pelas dificuldades do empresário, que, cheio de problemas financeiros, perdeu seu sonhado edifício para o governo italiano. Tentaram mudar o nome para América depois que ele foi confiscado, na época em que o governo brasileiro declarou guerra aos italianos.

Conta Cabral que o empreendedor conseguiu enriquecer novamente, dessa vez no Rio de Janeiro. Morreu e deixou uma fortuna para a família, mas a segunda mulher e um dos filhos perderam tudo novamente. Segundo o guia, a viúva e o filho terminaram os dias perambulando pelas ruas do Rio.

As visitas guiadas são feitas de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 11h30 e das 14h às 16h; sábados, das 9h às 15h; e domingos,  das 9h às 13h.

A entrada é pela avenida São João e o telefone para contato é o (11) 3104-2477.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

No cemitério

Há um passeio guiado no Cemitério da Consolação, mas numa tarde de folga a decisão foi de andar sem programação. Sempre acontece alguma coisa interessante. Sempre. Então, entrei  sozinha. Quem sabe não acharia, mesmo sem orientação, as famosas esculturas encomendadas a artistas renomados? Ou túmulos históricos?

O passeio guiado com certeza ajuda muito quem procura informações, mas andar sozinha também é interessante. Quase escrevo divertido, mas ficaria um pouco demais usar essa definição para o lugar visitado.

O primeiro túmulo avistado foi o da Marquesa de Santos, personagem de São Paulo com que já “encontrei”, sem planejar, numa volta sem pretensões pelo centro da cidade.
Na primeira vez, perdi a noção do tempo ao percorrer o solar transformado em museu, no lugar onde a bela dama viveu após ser despachada da corte de D. Pedro I, seu amante. 

Dessa vez, entrei no cemitério e, à direita, vi o túmulo simples, que não remete aos anos de glamour vividos por Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), transformada em marquesa por um gesto apaixonado e cheio de afronta do imperador.

Singelo, o túmulo da paulistana é, no entanto, dos mais interessantes. Rica, poderosa e caridosa, ela é uma das doadoras de dinheiro para a construção de parte do cemitério numa época em que ficou impossível seguir enterrando corpos no interior das igrejas. A doação da marquesa permitiu a construção da capela, próxima ao seu túmulo.

Uma placa informa sobre o gesto da velha dama. Outra pede para os visitantes não acenderem velas ou depositarem objetos no local. Outras três são de supostos beneficiados por graças concedidas por Domitila, conhecida em São Paulo pelos saraus promovidos no antigo casarão e por ser uma mulher de vanguarda.

Solta no cemitério, mas em busca de um pouco de direção, pergunto a um funcionário onde ficam os túmulos mais antigos.

- Ah, fia, não tem isso aqui não. É tudo misturado.

Sem guia, notei que o túmulo do empresário e mecenas Armando Álvares Penteado (1884-1947) é uma das peças valiosas da Consolação, mas não entendi o significado da capela negra e marrom, com oito pilares. Anotei a impressão de ter visto um monumento moderno, com toque oriental. Ao pesquisar, soube que a capela lembra a casa em que o mecenas viveu. O tal toque oriental ficou por minha conta. 

O jazigo da família Siniscalchi, construído no início do século 20, é dos mais bonitos e impressionantes. Moldado pela tradicional Marmoraria J. Savoia, é uma réplica de catedral gótica, com todos os seus detalhes. Uma obra de arte. 

Muito mais simples, mas também impressionante é o túmulo de Maria Judith de Barros, que teria morrido vítima da violência do marido. O túmulo é completamente coberto por placas de agradecimento de pessoas que teriam conseguido milagres com a ajuda da “santa popular”. Não dá para contar, tantas são as placas.

O jornalista Marcelo Duarte, autor da série de livros “O Guia dos Curiosos”, conta na publicação “São Paulo para Curiosos” que nos últimos anos Judith costuma ser muito procurada por vestibulandos desesperados para conquistar uma vaga na faculdade. Muitas das placas que estão ali são de estudantes bem sucedidos em seus objetivos. Sensacional.

Grandioso, como tudo na família, o mausoléu dos Matarazzo ocupa seis terrenos, segue o estilo pós-renascentista e, de tão monumental, chega a ser assustador com suas esculturas em bronze e granito. Ali, lamentei não ter talento para a fotografia. Num dos ângulos, o mausoléu contrasta com um prédio moderno (e feio), todo espelhado, na vizinhança. Passado e futuro se encontram num dos cantos mais silenciosos e escuros do cemitério. Sim, deu medo. 

Mais adiante, a espetacular escultura representando uma mulher cabisbaixa é do artista Antônio Celso, no túmulo de Lydia Piza de Rangel Moreira. Não sei quem são, mas basta olhar para ter a certeza: é uma das obras mais belas do local.  Selfies feitas no cemitério e espalhadas pelas redes sociais confirmam: a escultura é um dos cenários prediletos dos que não resistem ao ato de tirar fotos de si mesmos, em qualquer hora e lugar.

De Victor Brecheret, a clássica escultura Sepultamento, na foto, fica no túmulo da família Guedes Penteado. Mostra Cristo, sua mãe e quatro santas. É obra premiada do grande escultor. Só ela já vale a visita.

Para ler
Numa linguagem divertida e levemente picante, Paulo Setubal conta no livro “A Marquesa de Santos” a história da amante de D. Pedro I, da juventude à fase em que ela entrou em decadência na corte e foi obrigada a voltar a São Paulo.