domingo, 12 de outubro de 2014

A infância, sob tensão, num prédio ocupado


Fotos: Su Stathopoulos

Sentada na escadaria do antigo Columbia Palace Hotel, na avenida São João, centro de São Paulo, a menina Maria Eduarda, a Duda, 9 anos, tenta encontrar alguma novidade nos três livros que possui, um deles didático e os outros dois de histórias infantis.

 “Eu gosto muito de ler, mas só tenho esses três livros e estou cansada deles”, revela, enquanto acompanha as tentativas do irmão mais novo, Pedro, 7, de jogar futebol num dos corredores do prédio.

Os dois irmãos são moradores de uma das 40 ocupações feitas por sem teto no centro de São Paulo. Vivem a rotina típica da infância: vão para a escola, brincam, frequentam cursos extras, levam bronca e, às vezes, brigam com amiguinhos.

No entanto, há um clima tenso no dia a dia dos pequenos. Os 200 moradores, alojados no prédio de seis andares desde o dia 3 de outubro de 2010, podem ser expulsos a qualquer momento por causa do processo de reintegração de posse que corre na Justiça de São Paulo. Os adultos falam sobre esse temor o tempo todo. As crianças percebem o nervosismo. O medo fica suspenso no ar.

“Esses dias faltei na escola. Mas não gosto de fazer isso. Queria ter ido”, conta Duda.

O dia da falta é simbólico para os militantes dos movimentos sem teto de São Paulo – e para a própria cidade. Duda não foi para a escola porque a avenida em que mora virou palco de uma guerra entre policiais militares e ocupantes do prédio vizinho, construído para ser sede do hotel Aquarius e então ocupado há seis meses por famílias parecidas com as da menina.

A reintegração de posse do dia 16 de setembro ocorreu em meio a desespero, bombas de efeito moral disparadas pela polícia, gritos, móveis e outros objetos jogados pelos moradores e um conflito que se espalhou pelas ruas da região central.

Bem em frente, no antigo Hotel Columbia, as crianças viram e ouviram tudo. Sentiram medo da violência e também de perder a moradia. Viveram uma tarde invadida pelo cheiro do gás de efeito moral e por sustos causados pelo barulho das bombas.

“Tenho medo de não ter onde viver com minha filha. Medo de precisar morar num lugar em que não encontre serviço para mim e escola para ela”, explica Luzilene dos Santos Silva, mãe de Raíssa, 6, ao justificar sua decisão de viver na região central de São Paulo, num prédio ocupado.  

Segundo a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), mais da metade da população mundial mora hoje em áreas urbanas. Isso inclui um bilhão de crianças. Muitas ainda não têm acesso a escolas, hospitais e áreas de lazer, uma realidade ainda comum nas periferias das grandes cidades.

De acordo com dados do FLM (Frente de Luta por Moradia ), fatores como os baixos salários, desemprego e trabalho informal, especulação imobiliária e finanças públicas “drenadas para o setor parasitário (agiotas e rentistas)” excluem os trabalhadores sem teto das regiões urbanizadas e os empurram para a periferia.

No centro de São Paulo, a vida das mães, pais e de seus filhos é um pouco mais fácil do que nos bairros periféricos. A região oferece uma ampla rede de serviços: escolas, hospitais, centros de lazer, museus, praças.

O filho mais velho da agente comunitária de saúde Vanessa Cristina de Oliveira do Prado, por exemplo, vai todo dia a pé e sozinho para a escola. O adolescente tem 14 anos e, nos quatro anos em que vive na ocupação da São João, já conseguiu frequentar cursos de bombeiro mirim, circo e computação.

O mais novo, de oito anos, costuma passar horas na biblioteca no próprio prédio e também já participou de saraus literários promovidos pelos sem teto. São comuns também os passeios culturais em grupo. 

“Coisas que na periferia são mais difíceis. Se eu sair daqui, não tenho para onde ir. Com o que ganho, pagaria só o aluguel. Aqui, conquistei muita coisa para os meus filhos”, diz a mãe.

E também para ela. Vanessa concluiu o ensino médio e agora planeja ir para a faculdade. Quer cursar farmácia. Ela e os filhos dividem dois cômodos no antigo hotel com outra família, formada por avó e neto. Na hora de dormir, é preciso colocar colchões no chão do quarto. O outro cômodo funciona como cozinha.

Segundo o advogado Benedito Barbosa, o Dito, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, a insegurança provocada pelo medo das reintegrações de posse é o principal problema das meninas e meninos que vivem nas ocupações urbanas.

“No Brasil há a prevalência do direito à propriedade e não do direito à moradia”, critica. “O país nunca teve uma reforma urbana. A lógica da expulsão dos pobres é antiga”.

Dito deixa claros os objetivos dos movimentos que ocupam prédios abandonados no centro de São Paulo: forçar o poder público a investir em projetos de moradias populares.

No dia 24 de agosto, a Prefeitura de São Paulo assinou convênio junto ao governo do estado para o lançamento de licitação de Parceria Público-Privada para habitações no centro expandido. Serão implantadas 14.124 unidades habitacionais. O projeto inclui também a instalação de equipamentos públicos, infraestrutura e áreas de comércio e serviços, com investimento total de R$ 3,5 bilhões.

Sonhos

Ao contrário do que podem pensar os que nunca entraram num prédio ocupado por sem teto, a organização e a limpeza são regras rígidas no prédio do antigo Columbia. Há controle também sobre o uso de álcool e atenção aos conflitos familiares.  

O hotel estava abandonado há quase duas décadas quando virou moradia popular. Homens, mulheres e crianças precisaram tirar muito lixo dos quartos e corredores. Também providenciaram uma reforma para poder usar os banheiros.

Num jardim de inverno do passado, o esforço coletivo transformou em área de lazer um espaço inundado por água suja e apelidado de piscina.  A anacrônica máquina de lavar do hotel, quase uma relíquia, hoje é usada como churrasqueira.

Os meninos e meninas do prédio têm a sorte de ter como vizinha a cenógrafa Nazaré Brasil, 48, uma ativista social preocupada em levar cultura para as crianças da ocupação.

“Quero despertar nas crianças o que elas têm de melhor”, explica.

Entre as atividades lideradas por Nazaré estão sessões num cineclube dentro do prédio, teatro, leitura, passeios, aulas e exposição de desenhos e pinturas.

O prédio todo é decorado com fotos artísticas e quadros produzidos pelos próprios moradores. Num dos passeios, as crianças fotografaram o centro e puderam expressar o pensam sobre a região onde moram. Na biblioteca, os livros infantis dividem espaço com as obras adultas.

“As crianças são discriminadas nas escolas e em outros locais que frequentam. A leitura é uma forma de fugir dessa realidade triste”, afirma Adalberto Rodrigues Soares, 42, um dos coordenadores da ocupação na avenida São João.

Endurecido pelas dificuldades da vida, Adalberto não resiste e chora ao falar sobre a tentativa de abrir o horizonte dos pequenos sem teto.

“É muito triste não ter sonhos”, diz.   

Alheio à tensão que percorre todos os espaços do prédio, Mateus, 8, exerce como ninguém o seu direito ao sonho. Anda de um lado para o outro com sua barraquinha infantil, ótima para as brincadeiras de faz de conta.

“Dá até para fingir que é uma casa”, alegra-se. 



Nas ruas, uma realidade cruel

Diego é o nome de “guerra” do adolescente de 16 anos, um dos andarilhos de São Paulo. Ele vive nos arredores da praça Dom Gaspar há dez anos. Não sabe – ou não revela – onde estão os pais. 

Aprendeu a pedir comida, água, bebida, dinheiro, roupa ou qualquer outra coisa para as pessoas que encontra no caminho.

A reportagem acompanhou uma tarde de Diego no centro de São Paulo. Em poucos minutos, ele conseguiu uma garrafa de água, biscoitos, refrigerante, sanduíches de mortadela e um elogio.

“Você é bonito”, disse a moça loira com quem o garoto conversou rapidamente. Ele piscou, numa resposta charmosa. Ficou feliz.

Mas o menino de rua também sabe conseguir o que quer sem pedir ou usar o seu carisma. Ele rouba e conta sem meias palavras os segredos de seu “ofício”.

“Pego os celulares dos bolsos e as pessoas nem percebem”, diz. “Essa sua bolsa, com a alça fininha, é um perigo. É só puxar”, afirma, em tom de alerta, para a repórter.

Diego não sabe ler ou escrever. Já foi para a escola, mas não deu certo. Rebelde, arrumava brigas e mais brigas. Foi expulso e nunca mais voltou.

Segundo Censo da População em Situação de Rua na Municipalidade de São Paulo, realizado em 2011 pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, 212 crianças e 221 adolescentes vivem em situação de rua na capital, a maioria na região central da cidade.

O pequeno Davi, 2 anos, faz parte desse grupo. Mas, ao contrário de Diego, vive ao lado dos pais, que perambulam pelas ruas centrais e aceitam qualquer tipo de bico ou esmola.

“Todo dia corro atrás. Engraxo sapatos, peço comida, faço qualquer coisa”, conta Wilson, 40, o pai da criança.

Segundo ele, durante a noite a família aluga um quarto, onde ficam as roupas e brinquedos de Davi. À noite, a criança fica num carrinho ao lado dos pais. Dá tchau, manda beijinhos e, com sua simpatia, ajuda a família a ganhar um prato de comida ou dinheiro.

“Mas ele tem tudo que precisa. Não pediu para nascer, então corro atrás para cuidar dele”, garante o pai.

Diego passou a infância sem ter alguém para “correr atrás” por ele. Não sabe o que é brincar.

“A minha brincadeira sempre foi bater nas outras crianças”, afirma.

Resposta ainda mais desconcertante é a do amigo do adolescente, um menino de 13 anos que também vive nas ruas do centro e se nega a dizer o nome.



“Minha brincadeira é usar drogas”, revela, com os olhos cerrados e a voz rouca de tanto cheirar cola e fumar crack.



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