quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Arte, memória, escombros e loucura no antigo hospital

As paredes descascadas e os corredores sombrios do antigo Hospital Matarazzo, na região da avenida Paulista, nunca mais saíram da memória de quem assistiu a peça "O Livro de Jó", nos anos 1990, com a interpretação impressionante do ator Matheus Nachtergaele. Nu e coberto de sangue cênico, Matheus encontrou no espaço o cenário ideal para a atuação visceral.

Este ano o ex-complexo hospitalar recuperou o que parece ser uma vocação para as artes. Até domingo, dia 12, recebe a exposição "Made By...Feito por Brasileiros", que impressiona tanto quanto a encenação teatral de anos atrás.

O hospital está abandonado há duas décadas e foi comprado por um grupo francês para ser transformado num complexo comercial e turístico, com hotel, lojas, restaurantes, etc. Antes disso, 100 artistas foram convidados a fazer intervenções em grande parte dos 27 mil metros quadrados do local.

O resultado é espantoso e imperdível, a começar pela bela arquitetura do complexo e pela sensação de que aquelas paredes carregam muitas histórias - dos nascimentos às mortes.

Uma delas pode ser ficção - ou não. A intervenção artística de Vik Muniz é genial. Ele usou um dos quartos para contar "O curioso caso de Agenor Andrade Filho", cuja ficha médica teria sido encontrada num cofre no porão do hospital, embaixo da antiga sala da diretoria.

Agenor foi um contador solteiro e hipocondríaco, conhecido dos médicos e enfermeiros do hospital. Numa de suas internações, no entanto, a equipe médica encontrou cálculos no rins, extraiu e mandou para exames detalhados. Agenor morreu, vítima de infecção generalizada. Acontece que o especialista que recebeu o vidro com os tais cálculos não viu nada ali dentro, apesar do barulho das pedras no recipiente.

A conclusão foi que o contador conseguiu materializar em seu rim pedras que não existiam. Diz o relato que o médico responsável levou o caso para congressos e foi ridicularizado. É ficção, certo? Mas não parece. A intervenção de Vik Muniz inclui documentos de Agenor, inclusive a certidão de óbito. Tem também uma carta com toda a sua história de saúde. Radiografias. Fotos. E o vidro com os cálculos invisíveis.

Também impressiona o trabalho realizado  em conjunto por Laura Vinci e José Miguel Wisnik na antiga lavanderia do hospital. Ela pendurou dezenas de papéis brancos que voam o tempo todo por causa do vento provocado por ventiladores. Wisnik preparou uma trilha musical perturbadora, assim como a visão dos escombros do local. Ao lado, litros e litros de água de reuso inundam outra parte da lavanderia, numa chuva assustadora e impactante na seca São Paulo.

Há muitos vídeos ao longo da exposição e o som deles percorre os corredores e quartos o tempo todo. São essenciais para as sensações difíceis de explicar para quem ainda não foi ver a "Made By". Entre tantos sons, um atrai em especial. É o barulho provocado pelo papel rasgado por uma artista que se desnuda em frente às câmeras e revela uma angústia palpável, pesada.

- Ela se matou aos 21 anos, pouco depois de produzir essa obra. Já faz algum tempo, mas ainda é uma artista contemporânea, explica o instrutor.

Outro artista, Hector Zamora, define sua intervenção no complexo hospitalar como um delírio. E é.. Ele levou dezenas de vasos de plantas para o andar superior do hospital. A partir dos janelões e das sacadas dos quartos, todos foram jogados ao mesmo tempo para um pátio, provocando barulho ensurdecedor. A encenação foi filmada e é exibida bem perto dos vasos espatifados e das plantas abandonadas à morte. Ou à vida, pois da devastação pode vir o renascimento, como Zamora explica aqui.

Banheiros, a intacta capela e até fossos de elevadores são ocupados por arte. Há loucuras de todos os tipos. Um exemplo: estátuas em ruínas de santos da capela foram levados para uma sala para a cura, à base de ervas. Um grupo de salas escuras assusta e atrai ao mesmo tempo, mas o que a gente encontra no final é acolhedor: puffs fofos e um vídeo em que músicos tocam e dão cores imaginárias a seus instrumentos.

Algumas dicas: use sapatos confortáveis para percorrer toda a exposição. Vá com disposição. E com a cabeça bem aberta.

O antigo Hospital Matarazzo fica na alameda Rio Claro, 190, Bela Vista.

A entrada é gratuita.





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