segunda-feira, 17 de março de 2014

A Copacabana de Tito Madi

Matéria publicada no jornal BOM DIA, em 2011 A Copacabana em que Tito Madi conheceu o sucesso, na década de 1950, era noturna. Músicos se apresentavam nas boates da moda e, quando tinham folga, entravam para assistir os shows dos amigos. Eram companheiros, trocavam parcerias e indicações de trabalho. Uma época que deixou saudade. "Era maravilhosa", define Tito, aos 81 anos. "Sinto falta dos colegas como Lúcio Alves, Dolores Duran, Dick Farney, Elizeth Cardoso. A gente tinha amizade. Agora um quer derrubar o outro". Também sente falta de cantar. O cantor e compositor luta para recuperar os movimentos do lado esquerdo do corpo, perdidos há três anos, por causa de um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Faz fisioterapia diariamente, tenta caminhar sozinho durante os exercícios e, quando conseguir melhorar, pensa em voltar a levar seu rico repertório de canções aos vários cantos do Brasil. "Estou querendo aceitar que as notas altas eu não alcanço mais", lamenta, chateado. Acha que o público vai perceber. Está difícil encarar isso como um fato da vida. A Copacabana em que o BOM DIA encontrou Tito, na semana passada, estava ensolarada, movimentada, cheia de luz no apartamento de sala ampla em que vive ao lado de Gabi, a cachorrinha vira-lata adotada numa feira de animais. "Ela dorme comigo", revela. O músico é viúvo há 18 anos, tem dois filhos adultos e quatro netos que sempre o visitam. Conta com a atenção de duas cuidadoras, em esquema de revezamento. Uma delas, Cremilda, baiana criada em São Paulo e agora no Rio, se preocupa até com a imagem do patrão nas fotos. No momento, Tito espera a arte vencer a burocracia para ver lançado um programado DVD em que cantores consagrados interpretarão uma seleção de suas canções. Ele compôs cerca de 500 ao longo da vida musical, iniciada em Pirajuí, no interior de São Paulo, ao lado do pai e dos irmãos, amadores. Filho de pais libaneses, Tito nasceu na cidade de 22 mil habitantes e saiu de lá professor formado, aos 20 anos, mas com o ritmo brasileiro já instalado no coração. Para sempre. Hoje, na amada Copacabana, prefere o dia. A noite mudou muito. Antes, era musicalmente rica. "Eram dezenas de boates", lembra. Todas fechadas ou transformadas em bares. No livro "Chega de Saudade", sobre a história da bossa nova, o escritor Ruy Castro descreve o músico como um homem com "reservas inesgotáveis" de carinho. Parte desse estoque foi gasto com João Gilberto, considerado o criador do novo ritmo, um baiano amalucado que apareceu no Rio da década de 1950 e surpreendeu todos com seu enorme talento. No auge do sucesso por causa de "Chove lá fora", de 1957, Tito tentou conseguir espaço para o arredio João Gilberto nas boates da moda e emprestou seu apartamento ao amigo tradicionalmente sem-teto. Era como um irmão mais velho. Não deu certo. Como fez com outros amigos nessa fase inicial da carreira, João foi ficando e, segundo Tito, tinha desculpas clássicas para não comparecer à gravadora que o lançaria. "Ele falava: o Tonzinho está me atrapalhando, não quer fazer o arranjo". Tonzinho era Tom Jobim. Tito gastava com o amigo. Ele e um cantor italiano, vindo de São Paulo, se alojaram na casa e dali não saíam. Foram seis meses de hospedagem gratuita, com direito a café da manhã, almoço e jantar.Até que um dia o próprio Tito resolveu ir embora. E foi, com todos os móveis num caminhão de mudança. Depois, veio a história do violão. Os dois ex-amigos se encontraram na entrega de um prêmio, em São Paulo, discutiram por causa de um violão que João não parava de dedilhar, apesar dos pedidos de silêncio e.... o instrumento foi quebrado na cabeça de Tito. "Até hoje tenho a cicatriz", conta o compositor. Foram dez pontos e um inquérito policial que levava o baiano a ligar para o pirajuiense."Ah, o Vinícius [de Moraes] pediu para negar tudo", recorda Tito, imitando o jeito de falar do músico rival. Num show em 2008, João cantou "Chove lá fora", gesto interpretado por Tito como uma retratação. Convidado para assistir, não foi, mas sabe que o número terminou em aplausos. "Tenho o coração aberto", diz sobre o antigo "irmãos mais novo". Mas tem vontade de revê-lo? "Não, vontade não tenho. É capaz dele querer ficar". Como é natural numa vida de 81 anos, Tito tem lá seus arrependimentos. Um deles é não ter frequentado o apartamento de Nara Leão, em que foi gestada a bossa nova, movimento musical nascido no Rio da década de 1950. Já conhecido por causa de "Chove lá fora", achou que não precisaria mais passar as noites trocando ideias sobre canções com um grupo de jovens. Atribui a essa ausência o fato de muitas vezes ser esquecido como um dos criadores da bossa nova, apesar dos estudiosos o apontarem como precursor. "Foi um erro não ter ido". Outro arrependimento é surpreendente. Bom de bola, Tito recebeu, na juventude, convites para fazer testes em clubes. Entre eles o Noroeste, que recusou por ser torcedor do rival BAC (Bauru Atlético Clube), e o São Paulo, seu time no estado em que nasceu. "Deveria ter ido para ficar com a camisa, tirar fotos", diz, meio brincando, meio sério. O ponta-esquerda já estava entregue às melodias, não havia como dividir as noitadas de cantoria profissional com os treinos matutinos.Ou havia? "Os jogadores de hoje não vivem na noite?" Na época dos convites, Tito já morava em São Paulo, contratado pela TV Tupi. Visitava Pirajuí e Bauru por causa da família. As duas cidades, junto com o Rio de Janeiro, formam seu trio preferido. Compôs homenagens aos dois municípios do interior e fez várias apresentações por aqui, até ser obrigado a parar. Da capital paulista, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro. Fez sucesso na Tupi carioca e na Rádio Nacional, o sonho de todos os cantores. Ganhou fama, mas não muito dinheiro. Apenas o suficiente para uma vida tranquila, sem luxos. "Se fosse outro país, ficaria milionário apenas com Chove lá fora ", constata. O compositor teve a oportunidade de fazer uma turnê de seis meses pela Europa, abrindo os shows do grupo The Platters, que gravou três de suas canções. "Achei que não estava preparado. Pipoquei". Em Nova York, nos Estados Unidos, cantou no restaurante Via Brasil, em 1987. A pedidos do público, foram três horas e meia de apresentação. Com muita honra.

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